segunda-feira, 24 de junho de 2019

Da liberdade cristã

                                       DA LIBERDADE CRISTÃ


Calvino foi um teólogo humanista (este tempo foi marcado por um humanismo que existe apenas como pressuposto, como abstração, como idealização, em que o homem é pensado e representado como pura idealidade, submetido a exigências universais.), pregando, ensinando e escrevendo uma teologia bíblica que expressava o valor do homem diante do seu Criador, mas que, em função do seu distanciamento de Deus, causado pelo pecado, "tornou-se dependente da iniciativa salvífica de Deus em Cristo Jesus, único redentor do ser humano". Esta era e é a situação do homem em estado de ruptura com Deus. 

A graça salvadora ou graça especial provoca no homem uma nova vida, através da regeneração, operada pela ação do Espírito Santo, resultando numa "nova consciência" de vida. O Evangelho de Jesus Cristo traz verdadeira liberdade ao homem. Inserido na realidade do Reino de Deus, o homem, agora, responde à graça salvadora de Jesus Cristo, numa nova relação com Deus, consigo mesmo, com o outro e com a própria criação.

Assim, desenvolve sua nova vida na Comunidade da Fé – a Igreja – onde cresce no conhecimento das Escrituras, no exercício da comunhão, com todas as implicações da alteridade e, conseqüentemente, é remetido à sociedade a fim de que, na práxis da liberdade cristã, o Reino de Deus alcance os poderosos, os pobres, os oprimidos e os opressores.

A LIBERDADE CRISTÃ

Analisando os paradigmas antropológico, cristológico, soteriológico e eclesiológico, extraindo de tudo isso o elemento essencial dessa tese.Como proposta de vida oferecida por Deus aos homens de todos os tempos, através de Jesus Cristo, o Evangelho Encarnado,verificaremos, também, a partir desse levantamento, os desafios cada vez mais urgentes sobre a necessidade de uma proclamação do evangelho significativa, relevante e capaz de estabelecer diálogo com seus interlocutores atuais.

Tais princípios vividos por sua Igreja, foi o de promover, de igual forma, libertação e liberdade na práxis cristã, através do anúncio genuíno do Evangelho, provocando a desinstalação de uma religiosidade pós-moderna árida, superficial, pragmática, com fortes evidências fundamentalistas aqui e alhures, vencida pelas leis de mercado, que regem as relações humanas, tornando-as vazias de sentido existencial.

A questão antropológica é fundamental para a elucidação das questões teológicas, pois o conhecimento de Deus e o conhecimento sobre o ser humano apresentam uma correlação. O conhecimento de Deus é correlato àquele das questões imanentes ao ser humano.O ser humano tem consciência do infinito, porque tem consciência da infinitude da sua própria essência; e que este, na busca desta infinitude, a projeta a um ser absoluto: Deus.

"O ser absoluto, o Deus do homem é a sua própria essência. O poder do objeto sobre ele é, portanto, o poder da sua própria essência. Assim, é o poder do objeto do sentimento, o poder do sentimento; o poder do objeto da razão o poder da própria razão; o poder do objeto da vontade, o poder da vontade"

Não obstante o caráter imanentista da relação com a Divindade estar presente,e é verdade que a relação com o Divino tem por pressupostos elementos imanentes, fazendo com que grande parte da compreensão do Ente seja uma projeção daquilo que o humano tem, é ou deseja ser. A relação entre o ser humano e o Divino tem, por parte do humano, instrumentos imanentes e uma eterna busca de transcendência. Esta idéia despoja o elemento relacional, que faz com que a compreensão do mundo seja amplificada.

 O ser humano encontra a si e o seu sentido último quando encontra o Ser, e o entende como uma presença, e não como se este fosse projeção de si mesmo.A cultura humana, quando entendida como uma das expressões da sua natureza religiosa, como forma da religião, adequa-se a concepção de que não é possível banir Deus do mundo, nem entendê-lo como expressão da “prioridade axiológica do coração sobre os fatos brutos da realidade”. Religião é mais que isto: é expressão antropológica da necessidade da “fonte eterna de força, do eterno toque que nos aguarda, da voz eterna que ressoa em nós, nada mais.

Conhecer-se é conhecer a Deus, o que não exclui a busca da Transcendência e do Transcendente. Deus não pode ser tomado como símbolo poético, pois fazer isto é manifestar certo tipo de ateísmo.

Os conhecimentos são correlatos, não formando uma dicotomia, mas uma unidade que expressa a identidade da revelação. Nessa linha de pensamento, o homem jamais conhecerá a Deus sem se conhecer a si mesmo e vice-versa.Na verdade, conhecendo a nós mesmos, conheceremos a Deus. Há uma vinculação estreita entre esses dois pressupostos. Esse conhecimento mútuo sustentará, na verdade, a essência da liberdade humana.

Desde a criação, tal liberdade é responsável(a liberdade humana fundamenta-se em sua relação com Deus e na consciência de sua submissão ao Criador.) firmada numa relação de amor, a partir da aliança estabelecida por Deus, pois o sujeito só é formado a partir da liberdade e da responsabilidade.

Calvino 

"Ninguém se pode (sequer a si próprio) mirar sem, de pronto, o pensamento volver à contemplação de Deus em Quem vive e se move (At 17.28), porquanto, longe de obscuro é que os dotes com que somos prodigamente investidos, de modo algum de nós provêm. Mais até, nem é o nosso próprio existir, na verdade, outra (cousa) senão subsistência no Deus único."

A revelação é para o ser humano. Sem a iluminação do Espírito, o ser humano não "entende" a revelação. Porém, sem assumir sua humanidade, não é possível ao indivíduo compreender a Divindade. Idolatria consiste na projeção de si mesmo como se fosse Deus, ou a atribuição de divindade àquilo que é inferior ontologicamente à humanidade. "A verdadeira religião consiste na identificação deste elemento imanente da revelação: a correlação entre o conhecimento de Deus e o conhecimento de si mesmo." 

A liberdade tem início quando é assumido o compromisso, por parte do fiel, de imergir no conhecimento de si mesmo, encontrando, em si, as evidências da própria ação de Deus. Ver-se como criatura, como alguém mantido e preservado pela ação soberana de Deus, e ver, na própria essência, a imagem de Deus são algumas indicações da importância da antropologia para a libertação.

Falar de questões antropológicas é formular mais uma vez a pergunta primaz: o que é o homem? 

A reflexão teológica ou que fazem desta subserviente às questões antropológicas, sendo apenas reflexo das múltiplas manifestações de busca de superação. As implicações não se concentram às esferas religiosas, mas abrangem, também, todo o ethos humano e social.A investigação em torno da antropologia  parte da compreensão sobre o ser humano e a serventia desta compreensão para a cosmovisão.

Mas, para entender esta práxis,é preciso entender a matize teológica  desse pensamento: o agostinianismo:

Agostinho entende ser o homem formado de duas partes: corpo e alma. Para ele, a alma é imortal, proveniente de Deus e, por isso, retorna para Deus após a morte. 

Agostinho : "Ela clama que habita em você e que é imortal e que sua sede não lhe pode ser tirada pela morte corporal. Afasta-se da sua sombra; volta-te para ti mesmo; não sofrerás destruição alguma a não ser esquecendo-se de que é algo que não pode perecer.”

O ser humano, por si, não pode se salvar, pois é totalmente depravado – o que explica o fato deste, mesmo sendo imagem de Deus, deteriorar-se como o restante da criação. Para Agostinho, o ser humano, após a queda, não conserva, em si, absolutamente nada que não esteja corrompido. A partir disto, a salvação só pode ser ato de Deus, através da graça. Essa visão sobre o ser humano e sua total incapacidade para a salvação também se manifesta em outras esferas. 

Uma das tríades agostinianas é “memória, vontade e intelecto”. As três estão decaídas após a transgressão de Adão. Estas três dimensões, que abrangem a maneira como o ser humano compreende o mundo, faz dele incapaz de conhecer, por si, algo sobre a salvação.

A ação de Deus, no campo da vontade, é tirar o ser humano da única condição, que é desejar o pecado, para a condição de desejar resistir ao mal, exercendo a bondade pela ação de Deus. Esta restauração da capacidade de fazer o bem alcança também o intelecto, por si incapaz de apreender com a razão as verdades e conhecimentos de Deus. E a memória, que não conseguia reter, em si, as lembranças dos atos graciosos de Deus, é renovada.

A valorização  do particular em detrimento do universal,  recuperou a noção clássica de indivíduo,a sacramentalidade ligada não mais à superestrutura eclesiástica, mas nos indivíduos diante de Deus. A particularização da religião torna evidente e explícita a atualização do princípio, presente no Evangelho, e, proferido pelo próprio Jesus na confrontação com o judaísmo: “o sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2.27)

Funda-se, assim, o conceito protestante de indivíduo.Traz a responsabilidade sobre o cristão por assumir, em si, a vivência cristã e manifestar, pela sua vida em relacionamento (e não interior), a sua vocação. A partir disto, o paradigma não é o temor da morte e do inferno, mas a noção de vocação para o serviço.Neste serviço, é manifesta a identidade do ser humano restaurado.Vê, no ser humano, potencial para expressar, pela vida, sua salvação, ainda que esta expressão não seja o elemento salvífico, mas a expressão do mesmo.

Existe um ponto de contato e é explicado pela "sindérese": a vontade natural latente no ser humano, ou seja, um desejo inato pelo transcendente, pelo próprio Deus, mesmo estando a humanidade corrompida pelo pecado.Arde, no ser humano, uma centelha pelo Divino, uma centelha da "sindérese". Ela possui uma relação íntima com a consciência:

. Há fragmentos da imago Dei no ser humano, provenientes do seu estado antes da queda.

. A dificuldade em revelar tal continuidade na prática. Seria como se faltassem os atos equivalentes, ou seja, atuações que correspondam à "sindérese". A problemática não está entre Deus e o homem quanto ao alvo, mas sim, em como atingi-lo. Em outras palavras, a questão de fundo trata-se dos "meios para alcançar o fim."  Admitir que a vontade e a razão sejam mecanismos de compreensão, ainda que palidamente, da vontade de Deus, tornam-se inúteis para tal, até porque elas resistem à vontade de Deus, conseqüência do pecado. A sindérese mostra-se inoperante na prática.Ora, impossibilitada de se concretizar, questiona-se seu caráter de realidade, pois, numa dimensão fenomenológica, ela “contradiz a coisa hipostasiada em si.” Há uma redução da sindérese à simples postulação. Diante disso, logo “a natureza é ressuscitável.

A manifestação da graça de Deus acha seu ponto de contato no homem impossibilitado de concretizar o bem. A graça exerce a função de restauradora do homem. Este é o aspecto ou função positiva da "sindérese". Somente pela força vivificadora da graça é que a razão e a vontade do homem são revigoradas e restauradas.

A sindérese é condição para a efetividade da graça, mas pode constituir-se em obstáculo para a mesma. Toda vez em que o homem orgulha-se de sua própria e pretensa capacidade de praticar o bem, por si mesmo, lança-se em uma perdição ainda maior. Cabe ao homem viver na dinâmica da sindérese-graça boa vontade”.

 Na teologia da Cruz, não se aceita a "sindérese" como instrumento divino regulador, norteador, orientador da vida humana, visto que, pela cruz, as obras ficam todas destruídas. Depreende-se, daí, uma tensão dialética, pois a vontade natural, na busca do bem, choca-se com a vontade de Deus. Então, segundo a Teologia da Cruz, o homem é visto como alguém absolutamente impotente ou indiferente à vontade de Deus, mas uma vez tomado pela graça, há encontro e experiência com o Cristo Ressuscitado.Há uma predisposição no homem, visto ter sido criado para o exercício da relação Eu-Tu. Tal predisposição é dádiva e acusação, ou seja, a graça desconstrói, numa radical demolição, e gera total reconstrução e restauração das bases constitutivas do ser humano.

“A consciência precisa ser vista à luz da fé.” Cristo deve reinar na consciência. Significa dizer que a Lei deve ser expurgada da consciência pela força da graça de Deus em Cristo e, pela fé, “ser mantida fora dela.” Ou seja, toda vez que o homem busca viver na insistência da autonomia, achando-se capaz de viver a partir de si mesmo, conforme concepção moderna e pós-moderna, está fadado ao distanciamento de Deus.

A consciência humana foi feita para o bem, mas, destituída de sua essência pelo pecado, tornou-se insaciável e arbitrária, conduzindo, inevitavelmente, à morte. Longe da graça de Deus e entregue a si mesma, ela, a consciência, é “imprevisível e enganosa com respeito à liberdade e à emancipação.”





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