Romanos 9
Introdução - .O Problema dos judeus
.O trágico fracasso - 9:1-6
.A eleição de Deus - 9:7-13
.A soberana vontade de Deus - 9:14-18
.O oleiro e o barro - 9:19-29
.O erro dos judeus - 9:30-33
INTRODUÇÃO - O PROBLEMA DOS JUDEUS
Nos capítulos 9 a 11 Paulo tenta enfrentar um dos problemas mais
perturbadores que a Igreja tenha tido que resolver: o problema dos
judeus.
Os judeus eram o povo escolhido de Deus; tinham um lugar
único e especial nos propósitos de Deus; e contudo quando o Filho de
Deus veio ao mundo eles o rechaçaram e o crucificaram. Como se pode
explicar este trágico paradoxo? Como explicaremos o fato de que o povo
de Deus crucificasse o Filho de Deus? Este é o problema que Paulo tenta
enfrentar nestes capítulos. São capítulos complicados e difíceis, e, antes
de começar a estudá-los em detalhe, será bom expor as idéias com que
Paulo trabalha, e as linhas gerais da solução que propõe.
Uma coisa devemos notar antes de desentranhar o pensamento de
Paulo: os capítulos não foram escritos com ira: foram escritos com um
coração dolorido.
Paulo nunca poderia esquecer que era judeu e teria
dado sua própria vida prazerosamente se, fazendo-o assim, tivesse
podido levar a seus irmãos a Jesus Cristo.
Paulo nunca negou que os judeus fossem o povo escolhido. Deus os
tinha adotado como seu povo próprio; tinha-lhes dado a aliança e o
serviço do templo, e a Lei; tinha-lhes dado a presença de sua própria
glória; tinha-lhes dado os patriarcas: e, sobretudo, em sua ascendência
humana, Jesus tinha sido judeu.
Paulo aceita como um axioma o lugar
especial dos judeus no plano de salvação de Deus, e toma como ponto de
partida de todo o problema.
O primeiro ponto que propõe é este: é verdade que os judeus como
nação rechaçaram e crucificaram a Jesus, mas também é verdade que
nem todos os judeus o rechaçaram; alguns deles o receberam e creram
nEle, porque todos os primeiros seguidores de Jesus, nos primeiros dias,
eram judeus.
Paulo logo volta os olhos à história passada e insiste em
que o homem não é judeu por descender racialmente de Abraão. Várias
vezes na história judia houve nos caminhos de Deus um processo de
seleção — Paulo o chama eleição — pelo qual alguns dos descendentes
raciais de Abraão foram escolhidos e alguns rechaçados. No caso de
Abraão – Isaque, o filho nascido segundo a promessa de Deus, foi eleito,
mas Ismael, o filho nascido de um processo e desejo puramente natural,
não o foi. No caso de Isaque – seu filho Jacó foi eleito, mas Esaú, que
era gêmeo de Jacó, não foi.
Esta seleção não tem nada que ver com
méritos, não foi algo que aqueles escolhidos tivessem merecido como
um direito; foi inteiramente obra da sabedoria eletiva e o poder de Deus.
Além disso, a verdadeira nação de Israel, o verdadeiro povo
escolhido, nunca se identificou com a totalidade da nação; sempre se
identificou com o remanescente justo, os poucos que eram fiéis a Deus
quando todos os outros o negavam. Assim foi nos dias de Elias, quando
sete mil permaneceram fiéis a Deus enquanto o resto da nação tinha seguido a Baal.
Era parte essencial do ensino de Isaías, quem disse:
“Embora o seu povo, ó Israel, seja como a areia do mar, apenas um
remanescente voltará” (Isaías 10:22, NVI; Romanos 9:27).
Assim, o
primeiro ponto de Paulo é que em nenhum momento o povo escolhido
tinha sido todo o povo. Sempre houve seleção, eleição de parte de Deus.
Mas, é isto razoável? É razoável que Deus escolha uns e rechace
outros? É esta eleição justa, razoável, equitativa e reta? E, se alguns
homens são escolhidos e outros são rechaçados, não por virtude ou falta
deles mesmos, como podem ser culpados se rechaçarem a Cristo, e como
podem ser elogiados se o aceitam?
É aqui onde Paulo usa um argumento
no qual a mente vacila, e perante o qual reagimos com toda propriedade.
Simplesmente, o argumento de Paulo é que Deus pode fazer o que lhe
apraz e que o homem não tem direito alguém a questionar as decisões de
Deus, por inescrutáveis que possam ser.
O barro não pode replicar ao
oleiro; a decoração não pode replicar ao artesão que a fez. Um artesão
pode fazer dois copos, um para um propósito honorável e outro para um
propósito baixo; os copos não têm nada a fazer a respeito.
Isto, diz
Paulo, é o que Deus tem direito de fazer com os homens.
Cita o exemplo de Faraó (Romanos 9:17) e diz que Faraó foi
introduzido no cenário da história simples e somente para ser o
instrumento através do qual se demonstrasse o poder reivindicativo de
Deus. Em todo caso o povo de Israel tinha sido advertido da eleição dos
gentios e de seu rechaço, porque não escreveu acaso o profeta Oséias:
“Chamarei povo meu ao que não era meu povo; e amada, à que não era
amada” (Romanos 9:25; Oséias 1:10)?
Mas em todo caso este rechaço de Israel não era insensível e
insubstancial e casual. Aconteceu para que os gentios pudessem entrar.
A porta se fechou aos judeus para que pudesse abrir-se aos gentios. Os
judeus foram rechaçados para que os gentios pudessem ser recebidos.
Se
Deus endureceu os corações dos judeus e cegou seus olhos, Ele o fez
com o propósito último de abrir um caminho à fé para os gentios. Aqui
há um argumento estranho e terrível. Despojado de todos os elementos não essenciais, o argumento de Paulo é que Deus pode fazer o que quiser
com qualquer homem ou nação, e que deliberadamente obscureceu as
mentes e fechou os olhos dos judeus para que os gentios pudessem
entrar.
Qual era, pois, o engano fundamental dos judeus? Esta pode parecer
uma pergunta curiosa em vista do que já dissemos. Mas,
paradoxalmente, Paulo sustenta que embora o rechaço dos judeus foi
obra de Deus, contudo não precisava ter acontecido.
Paulo não pode
escapar do eterno paradoxo — nem o deseja — de que ao mesmo tempo
tudo é de Deus e o homem tem livre-arbítrio.
O engano fundamental dos
judeus foi que tentaram alcançar uma correta relação com Deus por meio
de seus próprios esforços humanos, pela obediência à Lei. Tentaram
ganhar a salvação autonomamente; enquanto que os gentios
simplesmente aceitaram o oferecimento de Deus em confiança perfeita e
total.
Agora, os judeus sabiam que o único caminho a Deus era o
caminho da fé, e que os interesses humanos não levam a lugar nenhum.
Não disse acaso Isaías: “Todo aquele que nele crê não será confundido”
(Isaías 28:16; Romanos 10:11)? E não disse Joel: “Todo aquele que
invocar o nome do Senhor será salvo” (Joel 2:32; Romanos 10:13)?
Certamente, ninguém pode ter fé até que ouça o oferecimento de Deus;
mas este oferecimento tinha sido feito aos judeus. Eles se aferraram ao
caminho do interesse humano pela obediência à Lei; apostaram tudo nas
obras; mas deveriam ter sabido que o caminho de Deus era o caminho da
fé, porque os profetas o haviam dito assim.
Agora, mais uma vez terá que acentuar que tudo isto está
concertado por Deus; e que foi concertado assim para permitir os gentios
entrarem. Por conseguinte Paulo se volta para os gentios. Ordena-lhes
não ter orgulho.
Eles estão na situação do renovo de oliveira brava que
foi enxertada em uma oliveira de jardim. Não conseguiram sua salvação
por si mesmos, como tampouco os judeus a conseguiram; de fato,
dependem dos judeus; são somente ramos enxertados; a raiz e o pé é
ainda o povo eleito.
O fato de sua própria eleição e o fato do rechaço dos judeus não têm que combinar-se para produzir orgulho no coração dos
gentios. Se isto acontecer, eles também podem ser rechaçados e o serão.
Mas é isto o fim? Longe disso.
O propósito de Deus é que os judeus
sejam levados à inveja pela relação dos gentios com Deus, e que
cheguem a solicitar ser admitidos também. Não disse acaso Moisés: “Eu
os provocarei a zelos com aquele que não é povo; com louca nação os
despertarei à ira” (Deuteronômio 32:21; Romanos 10:19)?
Enfim os
gentios serão o instrumento pelo qual os judeus serão salvos. “E, assim,
todo o Israel será salvo” (Romanos 11:26).
Paulo conclui, pois, o argumento. Podemos resumir seus passos,
sem todos os detalhes.
(1) Israel é o povo, eleito.
(2) Ser membro de Israel significa mais que uma descendência
racial. Sempre houve eleição na nação; e o melhor da eleição foi sempre
o remanescente fiel.
(3) Esta seleção de Deus não é irrazoável, porque Deus tem o
direito de fazer o que lhe apraz.
(4) Deus endureceu os corações dos judeus, mas só o fez para abrir
a porta aos gentios.
(5) O engano de Israel foi depender dos interesses humanos
fundados na Lei; a aproximação necessária a Deus é o de um coração
totalmente crédulo.
(6) Os gentios não devem ser orgulhosos, porque só são oliveiras
bravas enxertadas na oliveira de pura cepa. Eles deviam recordar isto.
(7) Este não é o fim; os judeus serão impulsionados a uma
maravilhosa inveja pelo privilégio que os gentios receberam, de modo
que enfim serão introduzidos pelos gentios.
(8) Assim, pois, ao final todos, judeus e gentios, serão salvos.
A glória está no final do argumento de Paulo. Começa dizendo que
alguns estavam escolhidos para ser admitidos e outros para ser rechaçados. Enfim deve dizer que a vontade de Deus é que todos os
homens sejam salvos.
O TRÁGICO FRACASSO Romanos 9:1-6
Com esta passagem Paulo inicia seu intento de explicar o rechaço
de Jesus Cristo pelos judeus.
Começa, não com ira, mas sim com
tristeza. Não há aqui um estalo de ira, nenhuma erupção de colérica
condenação; há a aguda tristeza de um coração dolorido.
Paulo era como
o Deus a quem amava e servia — odiava o pecado, mas amava o
pecador. Nunca ninguém tentaria salvar os homens a menos que os
amasse primeiro. Paulo vê os judeus, não como um povo que deve ser
castigado com ira, mas sim como um povo pelo qual se tem que suspirar
com ofegante amor.
Paulo teria posto voluntariamente sua vida se com isso tivesse
podido ganhar os judeus para Cristo. Pode ser que seus pensamentos
tenham retrocedido a um dos maiores episódios da história judia.
Quando Moisés subiu à cúpula da montanha para receber a Lei das mãos
de Deus, o povo que tinha ficado embaixo pecou fazendo o bezerro de
ouro e o adorando. Deus se irou com eles; e então Moisés pronunciou a
grande oração: “Perdoa-lhe o pecado; ou, se não, risca-me, peço-te, do
livro que escreveste.” (Êxodo 32:32).
Paulo diz que por causa de seus
irmãos consentiria em ser maldito, se com isso obtivesse algum bem. O
termo que ele utiliza é anathema e este é um termo terrível. Uma coisa
que era anátema estava sob excomunhão. Era entregue a Deus para sua
total destruição.
Quando uma cidade pagã era tomada todas as coisas
nela eram dedicadas à total destruição porque todas as coisas nela
estavam contaminadas (Deut. 3:6; 2:34; Josué 6:17; 7:1-26). Se alguém
tentava induzir a Israel a separar-se do culto ao verdadeiro Deus, então
era condenado sem piedade e sem misericórdia à total destruição (Deut.
13:8-11).
O mais querido em toda a vida era para Paulo o fato de que nada
podia separá-lo do amor de Deus em Cristo Jesus; mas se podia fazer
algo para salvar a seus irmãos, teria aceito até ser afastado de Deus.
Aqui
outra vez está a grande verdade; o homem que quer salvar o pecador
deve amá-lo. Quando um filho ou uma filha fez algo mau e incorre em
castigo, muitos pais e mães sofreriam prazerosamente o castigo se tão
somente pudessem.
Isto é o que sentiu Deus; isto é o que sentiu Paulo: e isto é o que nós
devemos sentir.
Paulo não nega nem por um momento o lugar dos judeus no plano
de Deus.
Enumera seus privilégios.
(1) Em um sentido especial eles eram filhos de Deus, especialmente
escolhidos, especialmente adotados na família de Deus. “Filhos sois do
SENHOR, vosso Deus” (Deuteronômio 14:1). “Não é ele teu pai, que te
adquiriu, te fez?” (Deuteronômio 32:6) "Israel é meu filho, meu
primogênito" (Êxodo 4:22). “Quando Israel era menino, eu o amei; e do
Egito chamei o meu filho” (Oséias 11:1).
Toda a Bíblia está cheia desta
idéia da especial filiação de Israel e do rechaço de Israel a aceitá-la em
seu sentido pleno.
Boreham em algum lugar relata uma visita, quando era jovem, à
casa de um amigo. Havia uma peça à qual estava proibido entrar. Um dia
estava diante do quarto quando se abriu a porta e viu dentro um jovem da
mesma idade que a sua, mas em um espantoso estado de idiotice animal.
Viu a mãe do sua aproximar-se dele. Ela devia ter visto o jovem
Boreham com toda sua saúde e vigor e ter visto logo a seu próprio filho,
e a comparação devia ter feito em pedaços o seu coração. Viu-a
ajoelhada junto à cama de seu filho idiota e gritar com certa angústia:
"Eu te alimentei e te vesti e te amei, e você nunca me conheceu."
Isto é o que Deus podia ter dito a Israel; só que neste caso era pior,
porque o rechaço de Israel tinha sido deliberado e lúcido. É terrível
romper o coração de Deus.
(2) Israel tinha a glória. A shekinah ou kaboth aparece várias vezes
na história de Israel. Era o divino esplendor luminoso que descia quando
Deus visitava seu povo (Êxodo 16:10; 24:16, 17; 29:43; 33:18-22). Israel
tinha contemplado a glória de Deus e tinha rechaçado a Deus. Foi-nos
dado contemplar a glória do amor de Deus e da misericórdia de Deus no
rosto de Jesus Cristo. É algo terrível contemplar a glória de Deus e logo
escolher os caminhos da Terra.
(3) Israel tinha as alianças. Uma aliança é uma relação contraída
entre duas pessoas. É um convênio para o proveito mútuo; um
compromisso de amizade mútua. Na história de Israel várias vezes Deus
se aproximou do povo de Israel e entrou numa relação especial com ele.
Assim o fez com Abraão, com Isaque, com Jacó e sobre o Monte Sinai
quando deu a Lei.
Irineu distingue quatro grandes ocasiões em que Deus entrou neste
acordo com os homens.
.A primeira aliança foi a aliança com Noé depois
do dilúvio, e seu sinal foi o arco íris no céu que confirmava a promessa
de Deus de que não voltaria a haver outro dilúvio.
.A segunda aliança foi
a aliança com Abraão e seu sinal foi o sinal da circuncisão.
.A terceira
aliança foi a aliança com a nação, lavrado no Monte Sinai e sua base foi
a Lei.
.A quarta aliança é a nova aliança em Jesus Cristo.
É uma coisa maravilhosa pensar que Deus se aproxima dos homens
e entra com eles em uma relação jurada. É a simples verdade que Deus
nunca deixou os homens sozinhos. Deus não se aproximou dos homens e
depois os abandonou. Realizou aproximação após aproximação aos
homens; e até realiza aproximação após aproximação à alma humana
individual. Ele está à porta e chama; e a tremenda responsabilidade da
vontade humana é que o homem pode rechaçar a Deus.
(4) Tinham a Lei. Israel nunca poderia alegar ignorância da vontade
de Deus; Deus lhes havia dito o que ele desejava que fizessem. E se eles
pecavam, pecavam conscientemente e não por ignorância, e o pecado
consciente é o pecado contra a luz, que é o pior de todos.
(5) Tinham o culto do templo. A adoração é em essência a
aproximação da alma a Deus; e no culto do templo Deus tinha dado aos
judeus um caminho especial para aproximar-se dEle. Se estava fechada a
porta a Deus, eles mesmos a tinham fechado.
(6) Tinham as promessas. Israel nunca poderia ter dito que não
conhecia seu destino. Deus lhes tinha falado a respeito da tarefa e do
privilégio que tinha destinados para eles em seu propósito. Eles sabiam o
que no plano de Deus estavam escolhidos para grandes coisas.
(7) Tinham os patriarcas. Tinham uma tradição e uma história; e é
um pobre homem aquele que se atreve a falsear suas tradições e afrontar
a herança na qual entrou.
(8) Logo vem a culminação. Deles saiu o Ungido de Deus. Todo o
resto tinha sido uma preparação para isto. Tudo tinha estado levando a
isto; e contudo, quando Ele veio, eles o rechaçaram.
A maior aflição que
um homem pode ter é dar a seu filho todas as oportunidades de êxito,
sacrificar-se e economizar e trabalhar para dar uma oportunidade ao
filho, e logo encontrar que este, por sua própria desobediência ou
rebeldia ou negligência, fracassou no intento.
Nisto há uma tragédia,
porque nisto está o desperdício da obra do amor e da destruição dos
sonhos do amor. A tragédia de Israel foi que Deus o tinha preparado para
o dia da vinda de seu Filho — e toda a preparação foi destruída e
frustrada. Não era porque tivesse sido quebrantada a Lei de Deus; era
que tinha sido menosprezado o amor de Deus. Não é a ira, mas o coração
quebrantado de Deus, o que jaz atrás das palavras de Paulo.
A ELEIÇÃO DE DEUS
Romanos 9:7-13
Se, pois, os judeus rechaçaram e crucificaram a Jesus, o Filho de
Deus, significa isto que o propósito de Deus foi frustrado e anulado o
plano de Deus? Paulo elabora um estranho argumento para provar que
não é assim. De fato nem todos os judeus rechaçaram a Jesus; alguns deles o aceitaram, porque é obvio, todos os primeiros seguidores de
Jesus foram judeus, antes que o Evangelho chegasse aos gentios, e Paulo
mesmo era judeu. Agora — diz Paulo — se retrocedermos na história de
Israel veremos agir várias vezes um processo de seleção. Várias vezes
vemos que não foram todos os judeus os que entraram no propósito e
desígnio de Deus. Alguns estavam e outros não estavam.
A linha da
nação através da qual Deus operava, e na qual levava a cabo seu plano,
não esteve em nenhum momento integrada por todos aqueles que podiam
pretender uma descendência física de Abraão.
No fundo de todo o plano não está meramente a descendência
física; há seleção, a eleição de Deus.
Para provar seu caso, Paulo cita
dois exemplos da história judia e os apóia com textos de prova. Abraão
teve dois filhos — Ismael que era filho da serva Agar, e Isaque que era
filho de sua esposa Sara. Tanto Ismael como Isaque eram verdadeiros
descendentes de sangue de Abraão. Fisicamente ambos eram seus filhos.
Sara era muito anciã quando teve a seu filho, tanto que, humanamente
falando, era uma impossibilidade. Quando Isaque nasceu e cresceu,
chegou um dia em que Ismael escarneceu de Isaque. Sara se ressentiu, e
exigiu que Agar e seu filho Ismael fossem expulsos e que só Isaque
herdasse. Abraão não tinha muita vontade de expulsar Agar e Ismael,
mas Deus lhe disse que o fizesse, seus descendentes preservariam seu
nome em Isaque (Gênesis 21:12).
Agora, Ismael tinha sido o filho de um processo humano natural e
normal e de um desejo humano; mas Isaque tinha sido o filho da
promessa de Deus, nascido quando, do ponto de vista humano, teria sido
impossível que nascesse (Gênesis 18:10-14). O direito de descendência
foi dado ao filho da promessa.
Aqui está pois, a primeira prova de
que nem todo descendente físico de Abraão deve ser considerado como
judeu, como escolhido. Dentro da nação a seleção e eleição de Deus
tinha continuado
Logo Paulo procede a citar outro exemplo.
Quando Rebeca, a
esposa de Isaque, esperava um menino, foi dito por Deus que em seu seio levava dois meninos que seriam os pais de duas nações; mas que
nos dias por vir o mais velho serviria e estaria sujeito ao mais novo
(Gênesis 25:23). Assim nasceram os gêmeos Esaú e Jacó, e Esaú foi de
fato o gêmeo mais velho, e com todo a eleição de Deus recaiu em Jacó, e
foi pela linha de Jacó que teria que realizar a vontade de Deus. Para
reforçar o argumento Paulo cita Malaquias 1:2-3, onde Deus é
representado dizendo ao profeta: “Amei Jacó, porém me aborreci de
Esaú.”
O argumento de Paulo é que o caráter de judeu é mais que a
descendência de Abraão, que o povo eleito não era simplesmente a soma
total de todos os seus descendentes físicos, que dentro dessa família
havia um processo de eleição através de toda a história. Um judeu podia
compreender e aceitar totalmente o argumento até aqui. Os árabes eram
descendentes de Ismael que era filho de carne e sangue de Abraão, mas
nunca teriam sonhado dizer que os árabes pertenciam ao povo eleito. Os
edomitas foram os descendentes do Esaú — o que de fato é o que
Malaquias quer dar a entender — e Esaú era filho legítimo de Isaque,
mais ainda irmão gêmeo de Jacó, mas nenhum judeu jamais teria dito
que os edomitas tinham alguma participação no povo eleito.
Do ponto de vista judeu, Paulo demonstrou seu ponto; havia eleição
dentro da família dos descendentes físicos de Abraão.
Paulo formula o
seguinte ponto no sentido de que esta seleção não tem nada que ver com
atos e mérito e merecimento humano disso. A prova disto é que Jacó foi
eleito e Esaú rechaçado antes de ter nascido. A eleição foi feita enquanto
eles eram ainda fetos no seio de sua mãe.
Inevitavelmente nossas mentes vacilam com este argumento.
Enfrenta-nos com a figura de um Deus que aparentemente com total
arbitrariedade escolhe a uns e rechaça a outros. Para nós não é um
argumento válido, porque faz Deus o responsável por uma ação que não
nos parece estar eticamente justificada.
Mas subsiste o fato de que,
embora nos seja estranho e inaceitável, era um argumento familiar para
um judeu. E até para nós, no coração deste argumento, permanece uma grande verdade. Tudo é de Deus; atrás de tudo está a ação de Deus; até
as coisas que parecem arbitrárias e fortuitas se remetem a Deus. Não há
nada neste mundo que se mova sem propósito.
A SOBERANA VONTADE DE DEUS
Romanos 9:14-18
Paulo começa agora a refutar os mesmos argumentos e objeções
que surgem em nossas próprias mentes. Estabeleceu que em toda a
história de Israel o processo de seleção e eleição foi contínuo; além disso
acentuou o fato de que esta eleição não estava baseada em mérito ou
merecimento algum da pessoa escolhida; dependia nada mais que da
vontade do próprio Deus.
O impedimento pergunta: "Mas, é isso razoável? É isso justo? É
justo que Deus pratique uma política de seleção totalmente arbitrária,
como se fosse totalmente por cima das cabeças dos homens?"
A resposta
de Paulo, para pô-la simplesmente, é que Deus pode fazer o que quer.
Nos dias terríveis do Império Romano, quando ninguém tinha a vida
segura, quando qualquer um podia morrer pelo capricho de um
imperador irresponsável e malicioso, Galba, um dos imperadores, disse,
quando chegou a ser imperador, que agora "ele podia fazer o que queria
e a quem queria".
Honestamente, isto é o que Paulo está dizendo a
respeito de Deus nesta passagem.
Novamente Paulo cita dois exemplos para provar este ponto e o
reforça com citações das Escrituras.
O primeiro exemplo é de Êxodo 33:19. Neste exemplo Moisés pede
alguma prova real de que Deus está verdadeiramente com o povo de
Israel. A resposta de Deus é que Ele terá misericórdia daqueles de quem
quiser ter misericórdia. A seleção da nação e a atitude de amante
misericórdia de Deus para com a nação depende só de Deus.
O segundo exemplo é da luta de Israel por libertar-se do Egito e do
poder de Faraó. Quando Moisés foi pela primeira vez a pedir a libertação, preveniu a Faraó que Deus havia trazido para Faraó o cenário
da história simplesmente para demonstrar o poder divino, e tornar claro o
que aquele poder divino faria ao homem que se opusesse. Faraó foi
introduzido na história para servir de exemplo a todos os homens do que
acontece ao homem que se opõe a Deus (Êxodo 9-16).
Mais uma vez, a mente vacila perante este argumento. Certamente,
em nenhum sentido se pode dizer que Deus pode fazer qualquer coisa.
Deus não pode fazer nada que contradiga sua própria natureza. Não pode
ser responsável por qualquer ato que seja injusto e que, de fato,
quebrante suas próprias leis.
Encontramos difícil, e até impossível,
conceber um Deus que irresponsavelmente dá misericórdia a uns e não a
outros, e que levanta um rei para ser mero boneco ou manequim por
meio do qual possa ser demonstrado o poder reivindicativo de Deus.
Outra vez, o argumento seria válido e convincente para um judeu, porque
novamente, em essência, significa que Deus está por trás de todas as
coisas.
E contudo, quando chegamos à raiz deste argumento, ele conserva
uma grande verdade. É impossível pensar a respeito da relação entre
Deus e o homem em termos de justiça. O homem não tem direito algum
sobre Deus. A criatura não tem direito algum sobre o Criador. Quando
seja que entre a justiça, a resposta é que o homem não merece nada de
Deus e não pode pretender nada.
O argumento esclarece que, na relação
de Deus com os homens, o essencial nunca pode ser o direito do homem
sobre Deus, senão somente a vontade de Deus e a misericórdia de Deus.
O OLEIRO E O BARRO
Romanos 9:19-29
Nas passagens anteriores Paulo esteve mostrando que através de
toda a história de Israel houve um contínuo processo de seleção e eleição
por parte de Deus. Surge uma objeção muito natural: Se no fundo de
todo processo está a eleição e o rechaço de Deus, como pode Deus condenar os homens que a rejeitaram? A falta não é deles absolutamente;
é realmente de Deus. A responsabilidade não recai sobre eles; recai sobre
Deus.
A resposta de Paulo é simples, quase próxima da crueldade.
Sua
resposta é que ninguém tem direito de discutir com Deus.
Quando um
oleiro faz uma vaso, este não pode replicar ao oleiro; o oleiro tem
absoluto poder sobre ele; do mesmo montão de barro pode fazer um vaso
para um propósito honroso e outro para um propósito desonroso, e o
barro não tem nada que ver com isso e nem sequer tem direito a
protestar.
Quanto a isto Paulo toma a figura de Jeremias (Jer. 18:1-6).
Terá que dizer duas coisas sobre isto.
(1) É uma má analogia. Um grande comentarista do Novo Testamento
disse que esta é uma daquelas poucas passagens que desejaríamos que
Paulo não tivesse escrito. Há uma diferença entre um montão de barro e um
ser humano. O ser humano é uma pessoa e o montão de barro uma coisa.
Pode ser que alguém possa fazer o que quiser com uma coisa, mas não
pode fazer o que quiser com uma pessoa. O barro não deseja replicar; o
barro não deseja questionar. O barro não pode sentir nem pensar; o barro
não pode ser angustiado, nem afligido e torturado.
Se alguém padeceu
inexplicavelmente alguma tristeza tremenda, que lhe rompe o coração e
lhe entristece a alma, não seria de muita ajuda dizer-lhe que não tem
direito a lamentar-se, porque Deus pode fazer o que quiser. Este é o sinal
de um tirano, não de um Pai amante.
É um fato básico do Evangelho que
Deus não trata os homens como o oleiro trata o montão de barro; trata-os
como um pai amante trata a seu filho.
(2) Mas uma vez dito isto, devemos recordar uma coisa: esta
passagem surgiu de um coração angustiado. Paulo estava diante do fato
entristecedor de que o próprio povo de Deus, seus próprios parentes,
tinham rechaçado e crucificado o próprio filho de Deus. Não era que
Paulo queria dizer isto; viu-se forçado a dizê-lo.
A única explicação
possível que pôde encontrar foi que, para seu próprio propósito, Deus
tinha tido que cegar de algum modo a seu próprio povo.
De qualquer maneira, Paulo não deixa o argumento aqui. Continua
dizendo que este rechaço dos judeus aconteceu para que pudesse ser
aberta a porta aos gentios.
Agora, mais uma vez, o argumento de Paulo
não é satisfatório.
Uma coisa quer dizer que Deus usou uma situação
pecaminosa para curar dela algo bom; mas é uma coisa completamente
diferente dizer que Deus elaborou uma situação pecaminosa para tirar
algo bom dela.
De fato quer dizer que Deus fez o mal para que pudesse
surgir o bem.
O que Paulo está dizendo é que Deus obscureceu
deliberadamente as mentes, e cegou os olhos, e endureceu os corações,
da massa do povo judeu para que se pudesse abrir o caminho de entrada
aos gentios.
Novamente, devemos recordar que este não é o argumento
de um teólogo tranquilamente sentado pensando em seu estudo; é o
argumento de um homem cujo coração estava desesperado por encontrar
alguma razão para uma situação completamente incompreensível.
Enfim
a única resposta que Paulo pode encontrar é que Deus o fez.
Agora, Paulo estava arguindo com judeus, e sabia que a única
maneira em que podia sustentar seu argumento era reforçá-lo com
citações de suas próprias Escrituras.
Assim, pois, continua citando textos
para provar que este rechaço dos judeus e esta aceitação dos gentios
tinha sido realmente antecipada pelos profetas.
Oséias havia dito que
Deus faria seu povo de um povo que não era seu povo (Oséias 2:23).
Disse que um povo que não era o povo de Deus seria chamado filhos de
Deus (Oséias 1:10).
Mostra como Isaías tinha previsto uma situação na
qual Israel teria sido consumido se não tivesse ficado um remanescente
(Isaías 10:22-23, 13:10).
O argumento de Paulo é que Israel teria
previsto sua destruição se só a tivesse compreendido.
É fácil criticar a Paulo nesta passagem; mas a única coisa que terá
que lembrar é que Paulo, em sua desesperada angústia por seu próprio
povo, aferrava-se ao fato que de algum modo tudo é obra de Deus. Para
ele isto era a única coisa que ficava por dizer.
O ERRO DOS JUDEUS
Romanos 9:30-33
Aqui Paulo traça um contraste entre duas maneiras de sentir para
com Deus.
Havia a maneira judia.
O propósito do judeu era ficar ele
próprio em correta relação com Deus.
Seu ponto de vista era que podia
conseguir isso por meio da estrita obediência à Lei.
Os judeus
consideravam a correta relação com Deus como algo que podia ganhar.
Agora, há outra maneira de expressar isto que mostrará o que realmente
significa.
Fundamentalmente, a idéia judia era que, por meio da estrita
obediência à Lei, a pessoa podia finalmente acumular um crédito a seu
favor. Uma vez adquirido esse saldo favorável Deus era seu devedor;
Deus lhe devia a salvação.
Essencialmente, o judeu considerava a amizade com Deus como
algo que podia ser merecido e ganho e conseguido pelo mérito humano.
Era obviamente uma batalha perdida, porque a imperfeição do homem
nunca pode satisfazer a perfeição de Deus; o pecado do homem nunca
pode merecer o direito de satisfazer a santidade de Deus; nada que possa
fazer o homem jamais pode nem mesmo começar a recompensar o que
Deus tem feito por ele.
Este foi precisamente o achado de Paulo.
Como
ele disse, os judeus passavam a vida na busca de uma lei, a obediência a
qual pudesse colocá-los como justos diante de Deus, e nunca a
encontraram porque não existe tal lei.
Os gentios nunca se dedicaram a essa busca.
Mas quando, repentina
e inesperadamente, foram confrontados com o incrível amor de Deus em
Jesus Cristo, simplesmente se entregaram a este amor com total
confiança.
Foi como se os gentios ao ver a cruz de Cristo tivessem dito:
"Se Deus me ama desta maneira, posso confiar nEle com toda mim vida
e com toda minha alma."
Os judeus tentaram fazer de Deus seu devedor;
os gentios se contentavam em ser devedores de Deus. O judeu cria que
podia ganhar a salvação fazendo coisas para Deus; o gentio se
maravilhava perante o que Deus tinha feito por ele. O judeu tentava encontrar o caminho a Deus pelas obras; o gentio chegava pelo caminho
da confiança.
Paulo estava convencido de que ninguém podia ganhar o
favor de Deus.
No final desta passagem temos a referência à pedra. Esta é uma
das referências características dos primitivos escritores cristãos.
No
Antigo Testamento há uma série de referências mas bem misteriosas à
pedra.
Em Gênesis 49:24 se descreve a Deus como o pastor e a pedra
(rocha) de Israel.
Em Isaías 8:14 se diz que Deus será por pedra de
tropeço e por rocha de escândalo para armadilha às casas de Israel.
Em
Isaías 28:16 Deus diz que pôs no Sião por fundamento uma pedra, pedra
preciosa angular, de alicerce estável.
Em Daniel 2:34-35, 44-45 há uma
referência a uma misteriosa pedra.
No Salmo 118:22 o salmista escreve:
"A pedra que desprezaram os edificadores veio a ser cabeça de esquina."
Agora, quando os cristãos começaram a buscar no Antigo
Testamento prenúncios de Cristo, encontraram-se com essas referências
a essa maravilhosa pedra. E nelas identificaram a Jesus.
Sua justificação
para fazê-lo assim foi que o relato do Evangelho mostra a Jesus mesmo
fazendo esta identificação e tomando o versículo do Salmo 118:22 para
aplicá-lo a si mesmo. O representa fazendo-o assim ao final da parábola
dos lavradores maus (Mateus 21:42).
Os cristãos pensaram a respeito da
pedra maravilhosa, que era o fundamento firme, a pedra que era a pedra
angular que sustentava unida a totalidade do edifício, a pedra que tinha
sido rechaçada e tinha chegado a ser a pedra principal, como a figura de
Cristo mesmo.
A entrevista que Paulo usa aqui é uma combinação de Isaías 8:14 e
28:16.
Os cristãos, inclusive Paulo, tomaram para significar isto: Deus
tem proposto a seu Filho para ser o fundamento da vida de todo homem,
mas quando ele veio os judeus o rechaçaram, e porque o rechaçaram este
dom de Deus que tinha sido proposto para sua salvação chegou a ser
causa de sua condenação.
Esta figura da pedra fascinava os cristãos.
Encontramo-la várias vezes no Novo Testamento (Atos 4:11; Efésios
2:20; 1 Pedro 2:4-6).
A verdade eterna atrás desta idéia é esta: Jesus Cristo foi enviado a
este mundo para ser o Salvador dos homens.
Mas Jesus Cristo é também
a pedra de toque pela qual todos os homens são julgados.
Se o coração
do homem transbordar amor e submissão a Jesus, Jesus é para ele
salvação.
Se o coração de um homem é inteiramente insensível ou
totalmente rebelde, Jesus é para ele condenação.
Jesus veio ao mundo
para nossa salvação, mas por sua atitude para com Jesus um homem
pode obter a salvação ou merecer a condenação.
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