segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A POSIÇÃO REFORMADA SOBRE A CRIAÇÃO

                                   A POSIÇÃO REFORMADA SOBRE A CRIAÇÃO

                                                           INTRODUÇÃO

O estudo dos decretos leva naturalmente à consideração da sua execução, e esta começa

com a obra da criação.

A doutrina da criação não é exposta na Escritura como uma solução filosófica do problema do mundo, mas, sim, em seu significado ético e religioso, como uma revelação de relação do homem com seu Deus.

Ela salienta o fato de que Deus é a origem de todas as coisas, e de que todas as coisas Lhe pertencem e Lhe estão sujeitas.

                                                CONTEXTUALIZAÇÃO

Enquanto a filosofia grega procurava a explicação do mundo num dualismo que envolve a
eternidade da matéria, ou num processo de emanação que faz do mundo a manifestação eterna
de Deus, a igreja cristã dede o começo ensinava a doutrina da criação ex nihilo e como um ato

livre de Deus.

Esta doutrina foi aceita com singular unanimidade desde o início. 

Acha-se em Justino Mártir, Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes, e outros.

Teófilo foi o primeiro “pai da igreja” a salientar o fato de que os dias da criação foram dias literais. 
Esta foi a opinião de Irineu e Tertuliano também e, era a opinião comum da igreja. 

Clemente e Orígenes achavam que a criação tinha sido realizada num momento único e
indivisível, e entendiam sua descrição como obra de vários dias como um simples recurso literário para descrever a origem das coisas na ordem do seu valor ou da sua conexão lógica. 

A ideia de uma criação eterna, como ensinava Orígenes, geralmente era rejeitada. 

Ao mesmo tempo, alguns dos chamados pais da igreja expressaram a ideia de que Deus sempre foi Criador, embora o universo criado tenha começa do no tempo. Durante a controvérsia trinitária, alguns deles acentuaram o fato de que, em distinção da geração do Filho, que foi um ato necessário do Pai, a criação do mundo foi um ato livre do Deus Triuno. 

Agostinho tratou da obra da criação mais minuciosamente que os outros.

Antes da criação o tempo não existia, dado que o mundo foi trazido à existência juntamente com o tempo, antes que no tempo. A pergunta sobre o que fazia Deus nas muitas eras antes da criação baseia-se num falso conceito da eternidade. Enquanto a igreja em geral parece que ainda sustentava que o mundo foi criado em seis dias comuns,Agostinho sugeriu uma conceituação um tanto diferente. 
Ele defendia vigorosamente a doutrina da "creatio ex nihilo", mas distinguia dois momentos da criação: a produção da matéria e dos espíritos do nada, e a organização do universo material. Achava difícil dizer de que espécie eram os dias de Gênesis, mas evidentemente estava inclinado a pensar que Deus criou todas as coisas,num momento de tempo, e que a ideia de dias foi simplesmente introduzida para auxiliar a inteligência finita. 

Os escolásticos discutiram bastante sobre a possibilidade da criação eterna:

Alguns, como Alexandre de Hales, Boaventura, Alberto Magno, Henrique de Ghent, e a grande
maioria dos escolásticos negando-a; 

Outros como Tomaz de Aquino, Duns Scotus, Durandus,Biel, e outros, afirmando-a. 

Todavia, a doutrina da criação com o tempo ou nele levou a palma.
Erígena e Eckhart constituíram exceções, ensinando que o mundo foi originado por emanação.
Ao que parece, os dias da criação eram considerados como dias comuns, apesar de Anselmo opinar que talvez fosse necessário concebe-los como diferentes sos nossos dias atuais. Os reformadores defendiam firmemente a doutrina da criação do nada, por um livre ato de Deus, no tempo ou com ele, e consideravam os dias da criação como seis dias literais. 

Esta concepção também foi mantida em geral na literatura do pós-Reforma, dos séculos dezesseis e dezessete, embora alguns teólogos (como Maresius, por exemplo) tenham falado ocasionalmente em criação contínua. 

No século dezoito, porém, sob a influência dominadora do panteísmo e do materialismo,
a ciência vestiu contra a doutrina da criação esposada pela igreja. Substituiu a ideia da absoluta originação por um fiat divino pela evolução ou desenvolvimento. 

Muitas vezes o mundo era apresentado como uma manifestação necessária do Absoluto. Sua origem foi empurrada para trás, milhares e até milhões de anos, rumo a um passado desconhecido. E houve teólogos que logo se engajaram em diversas tentativas da harmonizar a doutrina da criação com ensinos da ciência e da filosofia. 

Alguns sugeriram que os primeiros capítulos de Gênesis fossem interpretados alegórica ou miticamente; outros, que transcorreu um longo período de tempo entre a criação primária de Gn 1.1,2 e a criação secundária dos versículos subsequentes; e ainda outros, que os dias da criação foram de fato longos períodos de tempo.

                                         A BÍBLIA E A CRIAÇÃO

Não se acha a prova bíblica da doutrina da criação numa única e restrita porção da Bíblia,
mas em todas as partes da palavra de Deus. Não consiste de umas poucas e esparsas
passagens de duvidosa interpretação, mas sim, de um grande número de claras e inequívocas
afirmações que falam da criação do mundo como um fato histórico. 

Temos primeiramente a extensa narrativa da criação nos dois primeiros capítulos de Gênesis, que vale um post quando falarmos mais pormenorizadamente quando for considerada a criação do universo material. 

Estes capítulos certamente parecem ao leitor despreconcebido uma narrativa histórica e o registro de um fato histórico. E as muitas referências espalhadas pela Bíblia toda não a consideram diferentemente.

Todas elas se referem à criação como um fato da história. As diversas passagens em que se
acham essas referências podem ser classificadas como segue: 
(1) Passagens que salientam a onipotência de Deus na obra da criação, Is 40.26, 28; Am 4.13. 
(2) Passagens que indicam Sua
exaltação acima da natureza como Deus grandioso e infinito, Sl 90.2; 102.26, 27; At 17.24. 
(3) Passagens que se referem a sabedoria de Deus na obra da criação, Is 40.12-14; Jr 10.12-16; Jo1.3. 
(4) passagens que vêem a criação do ponto de vista da soberania e do propósito de Deus na
criação, Is 43.7; Rm 1.25. (5) passagens que falam da criação como a obra fundamental de Deus. Ne 9.6: “Só tu és o Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora”. Esta passagem é típica de várias outras passagens menos extensas que se acham na Bíblia e que dão ênfase ao fato de que Jeová é o criador do universo, Is 42.5; 45.18; Cl 1.16; Ap 4.11; 10.6.

                                        A CRIAÇÃO NA HISTÓRIA DA IGREJA

A crença da igreja na criação do mundo vem expressa já no primeiro artigo da Confissão de
Fé Apostólica (Credo Apostólico): “Creio em Deus Pai, Todo-poderoso, Criador dos céus e da
terra”. Esta é uma expressão de fé mantida pela Igreja Primitiva de que Deus, por Seu poder
absoluto, produziu do nada o universo. 

As palavras “Criador dos céus e da terra” não constavam de forma originária do Credo, mas representam um acréscimo posterior. Eles atribuem ao pai, isto é, à primeira pessoa da Trindade, a originação de todas as coisas. 
Isso está em harmonia com a descrição do Novo Testamento de que todas as coisas são do pai, mediante o Filho, e no Espírito Santo. 

A palavra “Criador” traduz o termo grego poieten, que se acha na forma grega da Confissão Apostólica, através do vocábulo creatorem, presente na forma latina. A Igreja primitiva
entendia o verbo criar no sentido estrito de “produzir do nada alguma coisa”. 

Deve-se notar nem sempre a Escritura usa a palavra hebraica "bara" e o termo grego ktizein naquele sentido absoluto.
Também emprega esses termos para denotar uma criação secundária, na qual Deus fez uso de
material já existente, mas que não podia causar por si mesmo o resultado indicado, Gn 1.21, 27;
5.1; Is 45.7,12; 54.16; Am 4.13; 1 Co 11.9; Ap 10.6. 

Utiliza-os até mesmo para designar algo que vem à existência sob a direção providencial de Deus, Sl 104.30: Is 45.7, 8: 65.18; 1 Tm 4.4. Dois outros termos são utilizados como sinônimos do termo “criar”, a saber, “fazer” (hebraico, ‘asah; grego, poiein) e “formar” (hebraico, yatsar; grego, plasso). 

O primeiro é claramente usado em todos os três sentidos indicados acima: de criação primária, Gn 2.4; Pv 16.4; At 17.24; mais freqüentemente, de criação secundária, Gn 1.7, 16, 26; 2.22; Sl 89.47; e de obras da providência, Sl 74.17. 

O outro é usado semelhantemente com referência à criação primária, Sl 90.2 (talvez o único exemplo deste uso); à criação secundária, Gn 2.7, 19; Sl 104.26; Am 4.13; Zc 12.1: e à obra
da previdência, Dt 32.18; Is 43.1, 7, 21; 45.7. 

As três palavras acham-se juntas em Is 45.7. A criação, no sentido estrito da palavra, pode ser definida como o livre ato de Deus pelo qual Ele,segundo a Sua vontade soberana e para a Sua própria glória, produziu no princípio todo o universo, visível e invisível, sem uso de material preexistente, e assim lhe deu uma existência distinta da Sua própria e, ainda assim, dele dependente. 
Tendo em vista os dados escriturísticos indicados acima, é evidente, porém, que essa definição se aplica àquilo que é geralmente conhecido como criação primária ou imediata, isto é, a criação descrita em Gn 1.1. 

Mas a Bíblia evidentemente usa a palavra “criar” também em casos em que Deus fez uso de materiais preexistentes, como na criação do sol, da lua, das estrelas, dos animais e do homem. Daí muitos teólogos acrescentam um elemento à definição da criação. Assim, Wollebius define: “A criação é o ato pelo qual Deus produz o mundo e tudo que nele há, em parte do nada e em parte de material que por sua própria natureza é inepto, para a manifestação da glória do Seu poder, sabedoria e bondade”. 

Entretanto, mesmo assim, a definição não cobre aqueles casos, também designados na Escritura como obra criadora, em que Deus trabalha mediante causa secundárias, Sl 104.30; Is 45.7, 8; Jr 31.22; Am 4.13, e produz resultados que só Ele pode produzir. A definição dada inclui vários elementos que pedem mais ampla consideração.

                          A CRIAÇÃO É UM ATO LIVRE DE DEUS 

Às vezes a criação é descrita como um ato necessário de Deus, e não como um ato livre e determinado por Sua soberana vontade. As velhas teorias da emanação e suas réplicas modernas, as teorias panteístas, naturalmente fazem do mundo apenas um momento do processo da evolução divina (Spinoza, Hegel) e, portanto, vêem o mundo como um ato necessário de Deus. E a necessidade que eles têm em mente não é uma necessidade relativa, resultante do decreto divino, mas uma necessidade absoluta que decorre da própria natureza de Deus, da Sua onipotência (Orígenes) ou do Seu amor (Rothe). 

Todavia, esta posição não é bíblica. As únicas obras que são inerentemente necessárias, como uma necessidade resultante da própria natureza de Deus, são as opera ad intra, as obras das pessoas do Ser Divino, separadamente consideradas: geração, filiação e processão. 

Dizer que a criação é um ato necessário de Deus é declarar também que ela é tão eterna como as obras imanentes de Deus. Se algum tipo de necessidade deve ser atribuída às opera ad extra de Deus, é uma necessidade condicionada pelo decreto divino e pela resultante constituição das coisas. É uma necessidade dependente da soberana vontade de Deus, e, portanto, não é necessidade no sentido absoluto da palavra. 

A Bíblia nos ensina que Deus criou todas as coisas segundo o conselho da Sua vontade, Ef 1.11; Ap 4.11; e que Ele é auto-suficiente e não depende de Suas criaturas, de modo nenhum, Jó 22.2, 3; At 17.25.

                               A CRIAÇÃO É UM ATO TEMPORAL DE DEUS


a. O ensino da Escritura sobre este ponto. 

A Bíblia começa com a singela declaração: “No princípio criou Deus os céus e a terra”. Gn 1.1. Sendo dirigida a todas as classes de pessoas, ela emprega a linguagem comum da vida diária, e não a linguagem técnica da filosofia. 
O termo hebraico bereshith (literalmente, “no princípio”) é indefinido e, naturalmente, dá surgimento à questão: No princípio do quê? Parece melhor tomar a expressão no sentido absoluto, como uma indicação do início de todas as coisas temporais e do próprio tempo: 

Keil, porém, é de opinião que se refere ao princípio da obra da criação. Tecnicamente falando, não é correto presumir que já existia o tempo quando Deus criou o mundo, e que Ele, em certo ponto desse tempo existente, deu “princípio” à produção do universo. O tempo é apenas uma das formas de toda a existência criada e, portanto, não poderia existir antes da criação. 

Por essa razão Agostinho achava mais correto dizer que o mundo foi criado "cum tempore" (juntamente com o tempo), que afirmar que foi criado "in tempore" (no tempo). 

A Escritura fala desse começo noutros lugares também. Mt 19.4, 8;Mc 10.6; Jo 1.1, 2; Hb 1.10. Também está claramente implícito que o mundo teve começo em passagens como Sl 90.2, “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo,de eternidade a eternidade, tu é Deus”: e Sl 102.25, “Em tempos remotos lançaste os fundamentos da terra: e os céus são obras das tuas mãos”.

           CRIAÇÃO COMO UM ATO PELO QUAL ALGO É PRODUZIDO DO NADA.

a. A doutrina da criação é absolutamente única. 

Tem havido muita especulação acerca da origem do mundo, e várias teorias têm sido propostas. Uns declaravam que o mundo é eterno,enquanto outros viam nele o produto de um espírito antagônico (gnósticos). 
Uns sustentavam que ele foi feito de material preexistente, a que Deus deu forma (Platão); Outros afirmavam que foi originado por emanação da substância divina (gnósticos sírios: Swedenborg): 
Outros o consideravam como a aparência fenomênica do Absoluto, sendo este o fundamento oculto de todas as coisas (panteísmo). 

Em oposição a todas esses vãs especulações dos homens, a doutrina da Escritura sobressai com grandiosa sublimidade: “No princípio criou Deus os céus e a terra”.

b. Termos bíblicos para “criar”. 

Na narrativa da criação, como já foi indicado, são empregados três verbos a saber, bara’, ‘asah e yatsar, e são utilizados alternadamente na Escritura, Gn 1.26,27; 2.7. 

A primeira palavra é a mais importante. Seu sentido originário é partir, cortar, dividir; mas,
em acréscimo, significa também formar, criar e, num sentido de derivação mais distante, produzir,gerar e regenerar. 
.A palavra mesma  transmite a idéia de produzir do nada alguma coisa,  usada às vezes com referência a obras da providência, Is 45.7; Jr 31.22; Am 4.13. Contudo, tem caráter distintivo: é sempre empregada com relação a alguma produção divina, nunca a qualquer produção humana; e nunca tem acusativo de material, pelo que serve para expressar a grandiosidade da obra de Deus. 
.A palavra ‘asah é mais geral, significando fazer ou formar, e,portanto, é empregada no sentido geral de fazer, formar, fabricar , modelar. 
.A palavra yastar tem,mais distintamente, o sentido de modelar com materiais preexistentes e, portanto, é empregada para descrever o trabalho do oleiro na modelagem de vasos de barro. 

As palavras do Novo Testamento são ktizein, Mc 13.19, poiein, Mt 19.4: themelioum, Hb 1.10,

. katartizein, Rm 9.22,
. kataskeuazein, Hb 3.4, 
. plassein, Rm 9.20. 

Nenhuma dessas palavras expressa diretamente a ideia de criação do nada.

“O nada do qual Deus cria o mundo são as eternas possibilidades da Sua vontade, que são as fontes de todas as realidades do mundo”

                                                CONCLUSÃO

Gn 1.1 registra o início da obra da criação, e certamente não apresenta Deus produzindo o mundo com material preexistente. Foi criação do nada, criação no sentido estrito da palavra e, daí, a única parte da obra registrada em Gn 1 a que Calvino aplica o termo. Mesmo na parte restante do capítulo, porém, Deus é descrito produzindo todas as coisas pela palavra do Seu poder, por um simples "fiat divino". 

A mesma verdade é ensinada em passagens como Sl 33.6, 9 e 148.5. A passagem mais forte é Hb 11.3: “Pela fé entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem”, ou, na versão utilizada pelo autor, “... de maneira que, o que se vê não foi feito das cousas que aparecem”. A criação é descrita aqui como um fato que apreendemos somente pela fé. Pela fé entendemos (percebemos, não compreendemos) que o mundo foi estruturado ou formado pela palavra de Deus, a palavra de poder de Deus, o fiat divino,de modo que as coisas que se vêem, as coisas visíveis deste mundo, não foram feitas das coisas que aparecem, que são visíveis, ou que, pelo menos, são vistas ocasionalmente. 
De acordo com essa passagem que pode ser citada nesta conexão é Rm 4.17, que fala de Deus, “que vivifica os mortos e chama à existência as cousas que não existem como se existissem” (Moffatt “que faz viver aos mortos e chama à existência o que não existe”). É verdade que, nesse contexto, Paulo  fala da da esperança de Abraão, de que teria um filho. Contudo, a
descrição de Deus aqui dada é geral e, portanto, também é de aplicação geral ou criação. 

Pertence à própria natureza de Deus ser Ele capaz de chamar à existência o que não existe, e Ele o faz.

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