sexta-feira, 27 de abril de 2018

Κεχαριτωμένη = ACEITO

                                         Κεχαριτωμένη = "SER ACEITO"


                                                                Lucas 1:28 "... mui aceita ... "



As razões pessoais e confessionais,e claro teológicas ou mesmo filológica mais superficial,não vão à fundo na verdadeira interpretação da palavra "Κεχαριτωμένη"

Na hermenêutica a questão não é neutra,pois muitas questões estão em jogo muitas questões teológicas.

Assim se faz necessário um estudo semântico do verbo "χαριτοῦν",verbo usado primeiramente por Lucas na tradição grega,pois foi limitado à concordâncias e dicionários,citando algumas referências,quando também se deveria ver sobre empregos e nuances em textos seculares e religiosos.



                                                              EXEGESES MODERNAS



A maior parte dos comentadores protestantes entendem κεχαριτωμένη no sentido duma simples eleição ou predestinação.


1. Em primeiro lugar, uma palavra sobre a interpretação de Lutero. 
É um facto largamente reconhecido que, no início, o Reformador era um defensor da Imaculada Conceição de Maria, mas mais tarde, no fogo da polêmica, ele chega a declarar, por vezes, que Maria era pecadora como todos os homens («magna peccatrix»
A mesma evolução se constata na maneira de traduzir κεχαριτωμένη. 
Em 1522 ainda, Lutero seguia a Vulgata («gratia plena») com a interpretação que ela implica, e traduzia «voll gnaden». Mas a seguir ele muda e opta por «liebe (Maria) e por «holdselige» (= «cheia de graças ou de encantos»; esta tradução foi-lhe inspirada pela de Erasmo: «gratiosa»). 
Estas duas novas traduções, filologicamente exatas como veremos, suprimem por assim dizer o significado teológico do κεχαριτωμένη de Lucas e o conceito da Χάρις divina à qual o particípio se refere.

Na língua alemã  preferem traduzir por «Begnadete» (N.T.: agraciada).
A ideia de «graça» é portanto reintroduzida, mas ela é interpretada simplesmente no sentido da graça da eleição.
A exegese da igreja primitiva entende esta saudação como uma forma eficaz de efectuar a concepção pela palavra. No entanto, a saudação contém aqui a expressão da sua eleição: a graça da eleição de Deus recaiu sobre ela, por conseguinte, é κεχαριτωμένη
"O trocadilho (….) enfatiza a graça da escolha divina]"
 "Uma referência à grandeza daquilo que vai seguir-se"
"O particípio indica que Maria foi especialmente favorecida por Deus, pelo facto de Ele a ter escolhido para ser a mãe do Messias"

A «graça» é portanto considerada do ponto de vista de Deus (a eleição, a predestinação),o que isto implica para Maria é simplesmente que ela foi escolhida para se tornar a mãe do Messias (nesse momento, ela ainda o não é!). 
A graça que ela vai receber é a sua próxima maternidade. Mas será que uma tal interpretação, que situa o ponto de aplicação de κεχαριτωμένη em Maria num futuro próximo é compatível com o tempo verbal que é um perfeito? E com que base documental se afirma que o verbo χαριτοῦν, tendo Deus como sujeito, significa «eleger, predestinar, escolher»? 
Não se cita nunca nenhum texto. Vemos já em que ponto a investigação filológica é aqui importante.


2. Entre os exegetas e os teólogos  reinava até muito recentemente uma grande unanimidade. Para caracterizar bem esta maneira tradicional de compreender Lc. 1, 28. representativos do último século. 
Há uma centena de anos, o conhecido exegeta L. Cl. Fillion escrevia: «Gratia plena: é a graça considerada em relação à própria Maria (…) Desde há muito que aprouve a Deus enriquecer das graças mais singulares aquela que ele tinha destinado para ser a Mãe de seu Filho»

Meio século mais tarde, L. Soubigou exprimia-se assim: «Maria é cumulada dos favores divinos (…); trata-se de uma plenitude de dons sobrenaturais dados por Deus a Maria, em ordem ao seu papel de mãe de Deus, ao qual ela estava destinada»


Apesar desta forte tradição,exegetas e teólogos orientam-se hoje no sentido da interpretação protestante de κεχαριτωμένη. 

Na sua grande obra sobre o nascimento do Messias, R. Brown afirma 

A Χάρις que torna Maria κεχαριτωμένη é a graça que ela vai receber ao conceber o Filho do Altíssimo; este significado teológico de κεχαριτωμένη é diferente do que que sugere a tradução latina gratia plena. Lucas conhecia no entanto esta expressão (Atos. 6, 8), mas ele não a utilizou: ela teria feito crer que Maria estava já na posse da graça, ao passo que Lucas queria dizer que o favor divino dado a Maria seria o de conceber Jesus

Mas duas questões continuam abertas e elas não são nada discutidas : tratar-se-á aqui da ação de Deus ou do estado atual de Maria
Tratar-se-á de uma graça próxima  ou de uma graça já presente ( particípio perfeito)? 

O exegeta bem conhecido Hortênsio da Spinetoli, nos seus dois livros sobre Maria),ele rejeita o que ele próprio chama a «interpretação teológica tradicional», que via na Χάρις de que fala o anjo «uma qualidade interior» de Maria; esta «graça», diz ele agora, significa que ela vai receber uma missão particular que estava no plano de Deus; este favor divino é «a maternidade messiânica», dom (charis) único que faz dela a ‘bem-amada’ de Deus por excelência; é por isso que ela é ‘cheia de graça’».



3. Estas divergências e estas flutuações na exegese moderna de Lc. 1,28 convidam-nos a reflectir sobre a questão do método. 
Concedamos que a tradição católica se deixou influenciar demasiadamente pelo latim «gratia plena»; é portanto preferível, numa exegese crítica de κεχαριτωμένη, renunciar ao emprego de palavras como «cheia, cumulada, plenitude», sem decidir em que medida estes termos distorceram necessariamente o sentido da palavra grega; mas indubitavelmente, é ao nível do grego que deve encaixar antes de mais a discussão. 
Por outro lado, há uma parte de verdade na nota de Brown: Lucas, que utiliza πλήρης χάριτος [cheio de graça] para Estêvão em Atos. 6, 8 (e πλήρης πνεύματος ἁγίου [cheio do Espírito Santo] para Jesus em Lc. 4, 1; acrescentemos para João: πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας [ cheio de graça e de verdade] em Jo. 1, 14) recorre em Lc. 1, 28 a uma outra fórmula para falar de Maria (κεχαριτωμένη). 
Por consequência, é provável que a nuance, aqui, venha a ser diferente.  
Ora isso requer evidentemente que nos empenhemos antecipadamente a fazer um estudo aprofundado do verbo χαριτοῦν. 
Mas será metodologicamente errôneo querer apontar, num sentido ou noutro, as implicações doutrinais e o alcance teológico da expressão, enquanto não se lhe conhece o sentido exato. É preciso portanto, com toda a evidência, empreender primeiro um estudo preciso do verbo grego utilizado aqui (e somente aqui!) por Lucas. 


                                                    ESTUDO FILOLÓGICO



Para estudar κεχαριτωμένη de Lc. 1, 28 do ponto de vista filológico, muitas abordagens complementares são necessárias. 


1. Os verbos em –όω


 Muitos autores, desde a Renascença até aos gramáticos de hoje, sublinharam a importância do facto de χαριτόω pertencer à categoria dos verbos em –όω, que são causativos. 
No seu estudo detalhado destes verbos, Moulton e Howard afirmam: "A força dominante destes verbos em –όω era instrumental ou factitiva" e a recente gramática de Blass-Debrunner-Rehkopf declara também nitidamente: "com -οῦν são formados os factitivos, principalmente os derivados de substantivos de tema em ο: δολιοῦν, ‘enganar’ Rom. 3, 13 VT de δόλι".


ἀγαθοῦν
αἰματοῦν
ἀλλοτριοῦν
ἀνακαινοῦν
ἀργυροῦν
δικαιοῦν
δουλοῦν

ἐλευθεροῦν
θαυμαστοῦν
θεμελιοῦν
κακοῦν
λευκοῦν
μελανοῦν
νεκροῦν
σκληροῦν
σκοτοῦν
ταπεινοῦν
τουφλοῦν
ὐπνοῦν
ὐψοῦν
χαλκοῦν
χρυσοῦν
fazer o bem
ensanguentar (cf. αἰματᾶν, estar ensanguentado)
tornar estranho
renovar (2Cor. 4, 16; Col. 3, 10)
endinheirar, dotar de dinheiro
tornar justo (Rom. 3, 26.30; 4,5)
reduzir à escravidão (distinguir de δουλεύειν, ser escravo) (Act. 7, 6 …)
tornar livre, emancipar, libertar (Jo. 8, 32.36; Rom. 8,2)
tornar surpreendente ou admirável
assentar sobre fundamentos, fundar (Ef. 3, 17)
maltratar, danificar (Act. 7,6; 12,1)
tornar branco, branquear
tornar negro, enegrecer (pelo contrário μελανεῖν, ficar negro
fazer morrer, mortificar (Rom. 4,19; Col. 3,5)
tornar duro
fechar a boca, amordaçar
abaixar, humilhar (Mt. 18,4; Lc. 3,5)
tornar cego, cegar (Jo. 12,40)
adormecer
elevar, exaltar (Lc. 1,52; Jo. 3,14)
forjar em bronze, cobrir de bronze
revestir de ouro, dourar (Ap. 17,4; 18,16)



À luz destes paralelos, o verbo causativo χαριτοῦν (que deriva de χάρις, «graça») devia normalmente significar na linguagem ordinária «tornar gracioso», tornar amável ou charmoso
E é também normal que o verbo tenha sido empregado sobretudo no particípio passivo (aquele que é gracioso, que é amável). 




No seu artigo, citado acima, M. Cambe afirma que a χάρις aqui «deve tomar-se sobretudo do lado da sua fonte (em Deus)… Também o cuidado de precisão exegética levou muitos autores a traduzir κεχαριτωμένη por ‘objecto da graça (ou do favor)’. Interpretar a expressão lucana «do lado de Deus» é típico da exegese protestante, que não considera o efeito já produzido em Maria; queira-se ou não, é necessariamente neste sentido que orienta a tradução que se propõe muitas vezes: «objecto do favor divino»; toda a atenção é então voltada para a acção de Deus.  mas que é empregado aqui na passiva. O acento não recai mais sobre a acção causativa do Deus que age (por exemplo, pela sua «eleição»), mas sobre o efeito que daí de seguiu para Maria. . 
            Mas dir-se-á, talvez não sem razão: tudo isto é teórico e abstracto. Para sermos convincentes, estas considerações devem ser verificadas nos textos e ilustradas concretamente pelo emprego semântico de χαριτοῦν na cultura grega. É o exercício que vamos agora fazer. Comecemos pela análise dos textos «profanos», onde as considerações religiosas estão totalmente ausentes.

O emprego de κεχαριτωμένη em Lc. 1, 28 (aspecto filológico)

            a) Da investigação precedente, nós podemos já tirar algumas conclusões importantes para a interpretação de κεχαριτωμένη em Lc. 1,28.

1)                 O verbo χαριτοῦν, que São Lucas é um dos primeiros a utilizar, recebe desta formação em -οῦν um valor causativo; ele indica o efeito que a χάρις produz  sobre alguém ou alguma coisa e significa portanto: «tornar gracioso» (Bailly). Este aspecto, evidentemente, é sobretudo desconcertante quando o verbo é empregado na voz activa: φύσις ἐχαρίτωσεν (αὐτήν), «a natureza o tinha tornado gracioso» (Nicéforo, ver n. 30); Νῶε… διὰ τῶν τῆς ἀρετῆς ἔργων χαριτώσας ἑαυτόν, «pela prática das virtudes, Noé tinha-se tornado agradável» aos olhos de Deus (Dídimo o Cego, cf. p. 11)[53].
2)   O mesmo aspecto encontra-se, no entanto, também nitidamente nos dois únicos casos onde reencontramos o verbo numa forma participial da voz passiva, seja no presente, seja no aoristo: «um belo olho que se tornou gracioso (κεχαριτούμένον) pelos seus olhares de soslaio»; o cadáver de um santo «que tinha sido tornado gracioso (χαριτωθέν, gratiosum effectum) pela paixão do martírio Gregório de Nissa).

3)Mas a forma verbal mais habitual é o particípio perfeito passivo (κεχαριτωμένος), precisamente a forma que nós temos em Lc. 1, 28; o acento é então colocado no resultado adquirido ou no estado presente da pessoa em questão: «um homem amável» (Sir 18,27 LXXX; cf. p. 9); «uma mulher graciosa» (Sir. 9, 8 em Clemente de Alexandria,, «um belo menino» . Em Lc. 1, 28, κεχαριτωμένη, poderia certamente, só do ponto de vista filológico, significar «graciosa», como o compreendia Erasmo («gratiosa») e Lutero; mas nós veremos um pouco mais adiante, e sobretudo na parte exegética, que todo o contexto exclui absolutamente este sentido profano da expressão.

b) O que temos vindo a dizer explica porque é que alguns autores pensam que κεχαριτωμένη em Lc. 1, 28 poderia ser equivalente a um simples adjectivo.