segunda-feira, 24 de abril de 2017

CORTANDO AS CORDAS DA IMPIEDADE

CORTANDO AS CORDAS DA IMPIEDADE



1. AS DISCIPLINAS ESPIRITUAIS: PORTA DO LIVRAMENTO

“Passo pela vida como um transeunte a caminho da eternidade, feito à imagem de Deus mas com essa imagem aviltada, necessitando de que se lhe ensine a meditar, adorar, pensar.” - Donald Coggan, Arcebispo de Cantuária
A superficialidade é maldição de nosso tempo. A doutrina da satisfação instantânea é, antes de tudo, um problema espiritual. A necessidade urgente hoje não é de um maior número de pessoas inteligentes, ou dotadas, mas de pessoas profundas.
As Disciplinas clássicas da vida espiritual convidam-nos a passar no viver na superfície para o viver nas profundezas. Elas nos chamam para explorar os recônditos interiores do reino espiritual. Instam conosco a que sejamos a resposta a um mundo vazio. John Woolman aconselhou: “É bom que vos aprofundeis, para que possais sentir e entender os sentimentos das pessoas.
” Não devemos ser levados a crer que as Disciplinas são para os gigantes espirituais e, por isso, estejam além de nosso alcance; ou para os contemplativos que devotam todo o tempo à oração e à meditação. Longe disso.
Na intenção de Deus, as Disciplinas da vida espiritual são para seres humanos comuns: pessoas que têm empregos, que cuidam dos filhos, que lavam pratos e cortam grama. Na realidade, as Disciplinas são mais bem exercidas no meio de nossas atividades normais diárias. Se elas devem ter qualquer efeito transformador, o efeito deve encontrar-se nas conjunturas comuns da vida humana: em nossos relacionamentos com o marido ou com a esposa, com nossos irmãos e irmãs, ou com nossos amigos e vizinhos.
Nem deveríamos pensar nas Disciplinas Espirituais como uma tarefa ingrata e monótona que visa a exterminar o riso da face da terra. Alegria é nota dominante de todas as Disciplinas. O objetivo das Disciplinas é o livramento da sufocante escravidão ao auto-interesse e ao medo. Quando a disposição interior de alguém é libertada de tudo quanto o subjuga, dificilmente se pode descrever essa situação como tarefa ingrata e monótona. Cantar, dançar, até mesmo gritar, caracterizam as Disciplinas da vida espiritual.
Num importante sentido, as Disciplinas Espirituais não são difíceis. Não precisamos estar bem adiantados em questões de teologia para praticar as Disciplinas. Os recém-convertidos - até mesmo as pessoas que ainda não se entregaram a Jesus - deveriam praticá-las. A exigência fundamental é suspirar por Deus. O salmista escreveu: “Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo” (Salmo 42:1, 2).
Os principiantes são bem-vindos. Eu também ainda sou principiante, especialmente depois de vários anos de praticar cada Disciplina apresentada neste livro. Conforme disse Thomas Merton: “Não desejamos ser principiantes.
Mas, convençamo-nos do fato de que, por toda a vida, nunca seremos mais que principiantes!” O Salmo 42:7 diz: “Um abismo chama outro abismo.” Talvez algures nas câmaras subterrâneas de sua vida tenha você ouvido o chamado para um viver mais profundo, mais pleno. Talvez você se tenha cansado das experiências frívolas e do ensino superficial. De quando em quando você tem captado vislumbres, insinuações de algo que ultrapassa aquilo que você tem conhecido.
Interiormente você tem suspirado por lançar-se em águas mais profundas.
Os que têm ouvido o distante chamado do seu íntimo e desejam explorar o mundo das Disciplinas Espirituais, imediatamente se defrontam com duas dificuldades.
A primeira é de ordem filosófica. A base materialista em nossa época tornou-se tão penetrante que ela tem feito as pessoas duvidarem seriamente de sua capacidade de ir além do mundo físico. Muitos cientistas de primeira categoria têm ido além de tais dúvidas, sabendo que não podemos estar confinados a uma caixa de espaço-tempo. Mas a pessoa comum é influenciada pela ciência popular que está uma geração atrás dos tempos e é preconcebida contra o mundo não-material.
É difícil exagerar quão saturados estamos com a mentalidade da ciência popular. A meditação, por exemplo, se de algum modo permitida, não é considerada como contato com um mundo espiritual real, mas como manipulação psicológica. Geralmente as pessoas tolerarão um breve toque na “jornada interior”, mas logo chega a hora de haver-se com os negócios reais do mundo real. Necessitamos de coragem para ir além do preconceito de nossa época e afirmar com os nossos melhores cientistas que existe mais do que o mundo material. Com honestidade intelectual, deveríamos dispor-nos a estudar e explorar este outro reino com todo o rigor e determinação que daríamos a qualquer campo de pesquisa.
A segunda dificuldade é de ordem prática. Simplesmente não sabemos como explorar a vida interior. Isto nem sempre tem sido verdadeiro. No primeiro século e anteriormente, não era necessário dar instruções sobre como “praticar” as Disciplinas da vida espiritual. A Bíblia chamou o povo a Disciplinas tais como jejum, meditação, adoração e celebração e quase não deu instrução nenhuma sobre a forma de executá-las. É fácil de ver a razão por quê. Essas Disciplinas eram tão freqüentemente praticadas e de tal modo constituíam parte da cultura geral que o “como fazer” era conhecimento comum. Jejuar, por exemplo, era tão comum que ninguém perguntaria o que comer antes de um jejum, como quebrar um jejum, ou como evitar a vertigem enquanto jejuava - toda a gente já sabia.
Isto não se verifica em nossa geração. Hoje existe uma ignorância abismal dos mais simples e práticos aspectos de quase todas as Disciplinas Espirituais clássicas. Daí que qualquer livro escrito sobre o assunto deve levar essa necessidade em consideração e prover instrução prática sobre a mecânica de Deus das Disciplinas. É preciso, porém, logo de início dizer uma palavra de acautelamento: conhecer a mecânica não significa que estamos praticando a Disciplina. As Disciplinas Espirituais são uma realidade interior e espiritual, e a atitude interior do coração é muito mais decisiva do que a mecânica para se chegar à realidade da vida espiritual.

A Escravidão de Hábitos arraigados

Acostumamo-nos a pensar no pecado como atos individuais de desobediência a Deus. Isto é bem verdade até certo ponto, mas a Bíblia vai muito mais longe.
Na sua carta aos Romanos, o apóstolo Paulo freqüentemente se refere ao pecado como uma condição que infesta a raça humana (i. é., Romanos 3:9- 18). O pecado como condição abre seu caminho através dos “membros do corpo”; isto é, os hábitos enraizados do corpo (Romanos 7:5 e seguintes). E não há escravidão que possa comparar-se à escravidão de hábitos pecaminosos arraigados.
Diz Isaías 57:20: “Os perversos são como o mar agitado, que não se pode aquietar, cujas águas lançam de si lama e lodo.” O mar não necessita fazer nada de especial para produzir lama e lodo; isto é o resultado de seus movimentos naturais. É o que também se verifica conosco quando nos achamos sob a condição de pecado. Os movimentos naturais de nossas vidas  produzem lama e lodo. O pecado é parte da estrutura interna de nossas vidas. Não há necessidade alguma de esforço especial. Não é de admirar que nos sintamos enredados.
Nosso método comum de lidar com o pecado arraigado é lançar um ataque frontal.
Confiamos em nossa força de vontade e determinação. Qualquer que seja nosso problema - ira, amargura, glutonaria, orgulho, incontinência sexual, álcool, medo - decidimos nunca mais repeti-lo; oramos contra ele, lutamos contra ele, dispomos nossa vontade contra ele. Tudo, porém, é em vão e uma vez mais nos encontramos moralmente falidos ou, pior ainda, tão orgulhosos de nossa justiça exterior que “sepulcros branqueados” é uma descrição suave de nossa condição.
Heini Arnold, em seu excelente livrinho intitulado Freedon From Sinful Thoughts (Liberdade de Pensamentos Pecaminosos), escreve: “Desejamos deixar perfeitamente claro que não podemos livrar e purificar nosso próprio coração exercitando nossa própria `vontade'“.
Na carta aos Colossenses, Paulo cita algumas formas exteriores que as pessoas usam para controlar o pecado: “não manuseies, não proves, não toques.” E então acrescenta que estas coisas “com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo” - que frase expressiva, e como descreve bem muita coisa de nossas vidas! No momento em que achamos que podemos ter êxito e alcançar a vitória sobre o pecado mediante a força de nossa vontade somente, esse é o momento em que estamos cultuando a vontade. Não é uma ironia que Paulo tenha olhado para nossos mais estrênuos esforços na caminhada espiritual e os tenha chamado de “culto de si mesmo”?
A força de vontade nunca terá êxito no trato com os hábitos profundamente arraigados do pecado. Emmet Fox escreve: “Tão-logo você resista mentalmente a qualquer circunstância indesejável ou não buscada, por esse próprio meio você a dotará de mais poder - poder que ela usará contra você, e você terá esgotado seus próprios recursos nessa exata medida.” Heini Arnold conclui: “Enquanto acharmos que podemos salvar-nos a nós mesmos por nossa própria força de vontade, a única coisa que fazemos é tornar o mal que há em nós mais forte do que nunca.” Esta mesma verdade tem sido comprovada por todos os grandes escritores da vida devocional, desde S. João da Cruz até Evelyn Underhill.
O “culto de si mesmo” talvez possa ter uma demonstração exterior de êxito por algum tempo, mas nas brechas e nas fendas de nossa vida sempre há de revelar-se nossa profunda condição interior. Jesus descreveu tal condição quando falou da exibição exterior de justiça dos fariseus. “Porque a boca fala do que está cheio o coração. ... Digo-vos que de toda palavra frívola que proferirem os homens, dela darão conta no dia de juízo” (Mateus 12:34-36). Mediante a força de vontade as pessoas podem fazer boa figura durante algum tempo; cedo ou tarde, porém, virá o momento desprevenido quando a “palavra frívola” escapará, revelando o verdadeiro estado do coração. Se estivermos cheios de compaixão, isto será revelado; se estivermos cheios de amargura, isto também se manifestará
Não temos a intenção de que seja assim. Não temos intenção nenhuma de explodir a ira ou de ostentar uma tenaz arrogância, mas quando estamos com outras pessoas, aquilo que somos vem à tona. Embora tentemos ocultar essas coisas com todas as nossas forças, somos traídos pelos olhos, pela língua, pelo queixo, pelas mãos, pela linguagem de todo o nosso corpo. A força de vontade não tem defesa contra a palavra frívola, contra o momento desprevenido. A vontade tem a mesma deficiência da lei - ela pode lidar somente com as exterioridades. Não é suficiente para operar a transformação necessária da disposição interior.


As Disciplinas Espirituais abrem a Porta


Quando perdemos a esperança de obter a transformação interior mediante as forças humanas da vontade e da determinação, abrimo-nos para uma maravilhosa e nova realização: a justiça interior é um dom de Deus que deve ser graciosamente recebido. A imperiosa necessidade de mudança dentro de nós é obra de Deus e não nossa. É preciso que haja um trabalho real interno, e só Deus pode operar a partir do interior. Não podemos alcançar ou merecer esta justiça do reino de Deus; ela é uma graça concedida ao homem.
Na carta aos Romanos o apóstolo Paulo esforça-se a fim de demonstrar que a justiça é um dom de Deus. Ele emprega o termo trinta e cinco vezes nessa epístola, e cada vez que o emprega fá-lo com êxito pelo fato de que a justiça não é atingida nem atingível mediante esforço humano. Uma as mais claras afirmações é Romanos 5:17: “... os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça, reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo.” Esse ensino, evidentemente, não se encontra só em Romanos mas na Bíblia toda e se apresenta como uma das pedras angulares da fé cristã.
No momento em que captamos esta compreensão palpitante, corremos  o risco de um erro no sentido oposto. Somos tentados a crer que nada há que possamos fazer.
Se os esforços humanos terminam em falência moral (e tendo-o tentado, sabemos que é assim), e se a justiça é um dom gratuito de Deus (conforme a Bíblia o declara com clareza), então não é lógico deduzir que devemos esperar que Deus venha e nos transforme? Por estranho que pareça, a resposta é “não”. A análise é correta: o esforço humano é insuficiente e a justiça é o dom de Deus. O que é falha é a conclusão, pois felizmente existe algo que podemos fazer. Não precisamos agarrar-nos às pontas do dilema das obras nem da ociosidade humanas
Deus nos deu as Disciplinas da vida espiritual como meios de receber sua graça.
As Disciplinas permitem-nos colocar-nos diante de Deus de sorte que ele possa transformar-nos.
O apóstolo Paulo disse: “O que semeia para a sua própria carne, da carne colherá corrupção; mas o que semeia para o Espírito, do Espírito colherá vida eterna” (Gálatas 6:8). O lavrador não consegue fazer germinar o grão; tudo o que ele pode fazer é prover as condições certas para o crescimento do grão.
Ele lança a semente na terra onde as forças naturais assumem o controle e fazem surgir o grão. O mesmo acontece com as Disciplinas Espirituais - elas são um meio de semear para o Espírito. As Disciplinas são o meio de Deus plantar-nos na terra; elas nos colocam onde ele possa trabalhar dentro de nós e transformar-nos. Sozinhas, as Disciplinas Espirituais nada podem fazer; elas só podem colocar-nos no lugar onde algo possa ser feito. Elas são os meios de graça de Deus. A justiça interior que buscamos não é algo que seja derramado sobre nossas cabeças. Deus ordenou as Disciplinas da vida espiritual como meios pelos quais somos colocados onde ele pode abençoar-nos.
Neste sentido, seria próprio falar do “caminho da graça disciplinada”. É “graça” porque é grátis; é “disciplinada” porque existe algo que nos cabe fazer. Em The Cost of Discipleship (O Custo do Discipulado), Dietrich Bonhoeffer deixa claro que a graça é grátis, mas não é barata. Uma vez que entendemos com clareza que a graça de Deus é imerecida e imerecível, se esperamos crescer devemos iniciar um curso de ação conscientemente escolhida, que inclua tanto a vida individual como em grupo. Essa é a finalidade das Disciplinas Espirituais.
Seria conveniente visualizar o que vimos estudando. Imaginemos uma passagem estreita com um declive íngreme de cada lado. O abismo da direita é o caminho da falência moral por meio dos esforços humanos para alcançar a justiça.
Historicamente se tem dado a isto o nome de heresia do moralismo. O abismo da esquerda é o caminho da falência moral pela ausência de esforços humanos. Este tem sido denominado heresia do antinomianismo. Essa passagem representa um caminho - as Disciplinas da vida espiritual. Este caminho conduz à transformação interior e à cura que buscamos. Não devemos desviar-nos para a direita nem para a esquerda, mas permanecer no caminho. Este está cheio de sérias dificuldades, mas também conta com incríveis alegrias. À medida que andamos neste caminho, a bênção de Deus virá sobre nós e nos reconstruirá à imagem de seu Filho Jesus Cristo. Devemos lembrar-nos sempre de que o caminho não produz a mudança; ele apenas nos coloca no lugar onde a mudança pode ocorrer. Este é o caminho da graça disciplinada
Há um ditado em teologia moral que diz que “virtude é fácil”. Isto é verdadeiro somente até onde a obra graciosa de Deus tenha assumido o comando de nossa disposição interior e transformado os padrões de hábitos arraigados de nossas vidas. Enquanto isto não se realizar, a virtude é difícil, difícil mesmo
Lutamos por exibir um espírito amável e compassivo; não obstante é como se estivéssemos levando para dentro algo trazido do exterior. Surge então, das profundezas interiores, a única coisa que não desejávamos: um espírito mordaz e amargo. Contudo, uma vez que tenhamos vivido no caminho da graça disciplinada por uma temporada, descobrimos mudanças internas.
Não fizemos nada mais do que receber um dom, não obstante sabemos que as mudanças são reais. Sabemos que são reais porque verificamos que o espírito de compaixão que outrora achávamos tão difícil, é agora fácil. Na realidade, difícil seria estar cheio de amargura. O Amor divino entrou em nossa disposição interior e assumiu o controle de nossos padrões de hábitos. Nos momentos desprevenidos, brota do santuário interior de nossa vida um fluxo espontâneo de “amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gálatas 5:22, 23). A necessidade cansativa de ocultar dos outros aquilo que somos interiormente já não existe.
Não temos de esforçar-nos para ser bons e generosos; somos bons e generosos.
Difícil seria refrear-nos de ser bons e generosos, porque a bondade e a generosidade fazem parte de nossa natureza. Assim como os movimentos naturais de nossa vida outrora produziam lama e lodo, agora eles produzem o fruto do Espírito. Shakespeare escreveu: “A qualidade da misericórdia não é forçada” - nem o são quaisquer das virtudes espirituais uma vez que elas assumam o comando da personalidade.


O Caminho da Morte: Transformar as Disciplinas em Leis


As Disciplinas Espirituais visam ao nosso bem. Elas têm por finalidade trazer a abundância de Deus para nossa vida. É possível, contudo, torná-las em outro conjunto de leis que matam a alma. As Disciplinas dominadas pela lei respiram morte.
Jesus ensinou que devemos ir além da justiça dos escribas e fariseus (Mateus 5:20). Todavia, precisamos ver que tal justiça não era coisa de somenos. Eles estavam comprometidos em seguir a Deus numa forma para a qual muitos de nós não estamos preparados. Um fator, contudo, era sempre central à sua justiça: exterioridade. A justiça deles consistia em controlar as aparências externas, muitas vezes incluindo a manipulação de outras pessoas. Até que ponto temos ido além da justiça dos escribas e fariseus pode ser visto no quanto nossa vida demonstra a obra interna de Deus no coração. Ela produzirá resultados externos, mas a obra será interna. É fácil, em nosso zelo pelas Disciplinas Espirituais, torná-las na justiça exterior dos escribas e fariseus.
Quando as Disciplinas se degeneram em lei, elas são usadas para manipular e controlar pessoas. Tomamos ordens explícitas e as usamos para aprisionar outros. O resultado de tal deterioração das Disciplinas Espirituais é orgulho e medo. O orgulho domina porque chegamos a crer que somos o tipo certo de pessoas. O medo domina porque o poder de controlar os outros traz consigo a ansiedade de perder o controle, e a ansiedade de ser controlado por outros.
Se quisermos progredir no caminhar espiritual de sorte que as Disciplinas sejam bênção e não maldição, devemos chegar, em nossas vidas, ao lugar onde depomos a carga eterna da necessidade de dirigir os outros. Essa necessidade, mais do que qualquer outra coisa, levar-nos-à a transformar as Disciplinas Espirituais em leis. Uma vez que criamos uma lei, temos uma  “exterioridade” pela qual podemos julgar quem está à altura e quem não está. Sem leis, as Disciplinas são, antes de tudo, uma obra interna e é impossível controlar uma obra interna. Quando verdadeiramente cremos que a transformação interior é obra de Deus e não nossa, podemos dar descanso a nossa paixão por endireitar a vida dos outros.
Devemos estar cônscios de quão rapidamente podemos agarrar esta ou aquela palavra e transformá-la em lei. No momento em que assim procedemos, qualificamo-nos para o severo pronunciamento de Jesus contra os fariseus: “Atam fardos pesados (e difíceis de carregar) e os põem sobre os ombros dos homens, entretanto eles mesmos nem com o dedo querem movê-los” (Mateus 23:4).
Em questões assim necessitamos das palavras do apóstolo Paulo embutidas em nossas mentes: “Não tratamos da letra, mas do Espírito. É que a letra da lei conduz à morte da alma” (2 Coríntios 3:6, Phillips).
Ao entrarmos no mundo interior das Disciplinas Espirituais, sempre haverá o perigo de torná-las em lei. Mas não estamos abandonados aos nossos próprios inventos humanos. Jesus Cristo prometeu ser nosso Professor e Guia sempre presente. Sua voz não é difícil de ser ouvida. Não é difícil entender suas instruções. Se começarmos a calcificar o que deveria sempre permanecer vivo e crescente, ele nos dirá. Podemos confiar em seu ensino. Se nos desviarmos para alguma idéia errônea ou prática inaproveitável, ele nos conduzirá de volta. Se estivermos dispostos a ouvir o Instrutor Celestial, receberemos a instrução de que necessitamos
Nosso mundo está faminto de pessoas verdadeiramente transformadas. Leon Tolstói observou: “Todos pensam em mudar a humanidade e ninguém pensa em mudar a si mesmo.” Estejamos entre os que crêem que a transformação interior de nossa vida é um alvo digno de nosso melhor esforço.



PRIMEIRA PARTE : " CORTANDO AS CORDAS INTERIORES "




                                                            MEDITAÇÃO


“A verdadeira contemplação não é um truque psicológico mas uma graça teológica.”

                                                                                                          (Thomas Merton)





Na sociedade contemporânea nosso Adversário se especializa em três coisas: ruído, pressa e multidões. Se ele puder manter-nos ocupados com “grandeza” e “quantidade”, descansará satisfeito. O psiquiatra C. G. Jung observou certa vez: “A pressa não é do diabo; ela é o diabo.”

Se esperamos ultrapassar as superficialidades de nossa cultura - incluindo a cultura religiosa - devemos estar dispostos a descer aos silêncios recriadores, ao mundo interior da contemplação. Em seus escritos, todos os mestres da meditação esforçam-se por despertar-nos para o fato de que o universo é muito maior do que imaginamos, que há vastas e inexploradas regiões interiores tão reais quanto o mundo físico que tão bem conhecemos. Falam das palpitantes possibilidades de nova vida e liberdade. Chamam-nos para a aventura, para sermos pioneiros nesta fronteira do Espírito. Embora possa soar estranho aos ouvidos modernos, não deveríamos envergonhar-nos de nos matricularmos como aprendizes na escola da oração contemplativa.

CONCEPÇÕES ERRÔNEAS

Freqüentemente se indaga se é possível falar da meditação como sendo cristã.

Não é ela antes propriedade exclusiva das religiões orientais? Sempre que falo a um grupo sobre a meditação como Disciplina Cristã clássica, há o inevitável franzir de sobrolhos. “Eu pensava que os adeptos da Meditação Transcendental fossem o grupo que lidava com a meditação.” “Não venha dizer-me que nos vai dar um mantra para recitar!”

Que a meditação seja palavra tão estranha aos ouvidos do Cristianismo moderno é um lamentável comentário sobre o seu estado espiritual. A  meditação sempre permaneceu como uma parte clássica e central da devoção cristã, uma preparação decisiva para a obra de oração, e adjunto dessa obra. Sem dúvida, parte do surto de interesse pela meditação Oriental se deve ao fato de as igrejas terem abandonado o campo. Quão deprimente é, para um estudante universitário que busca conhecer o ensino cristão sobre a meditação, descobrir que há tão poucos mestres vivos da oração contemplativa e que quase todos os escritos sérios sobre o assunto têm sete séculos ou mais de idade. Não é de admirar que tal estudante se volte para o zen, para a ioga ou para a meditação transcendental.

Certamente que a meditação não era coisa estranha aos autores das Escrituras.

“Saíra Isaque a meditar no campo, ao cair da tarde” (Gênesis 24.63).

“No meu leito, quando de ti me recordo, e em ti medito, durante a vigília da noite” (Salmo 63.6).

Essas eram pessoas chegadas ao coração de Deus. Deus lhes falava, não porque elas tivessem capacidades especiais, mas porque estavam dispostas a ouvir. Os Salmos, praticamente, cantam das meditações do povo de Deus sobre a lei do Senhor: “Os meus olhos antecipam as vigílias noturnas, para que eu medite nas tuas palavras” (Salmo 119.148). O salmo introdutório do Saltério inteiro chama o povo todo a imitar o homem “bem-aventurado”, cujo “prazer está na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite” (Salmo 1.2).

Os escritores cristãos através dos séculos têm falado de um modo de ouvir a Deus, de comunicar-se com o Criador do céu e da terra, de experimentar o Amado Eterno do mundo. Pensadores tão excelentes como Agostinho, Francisco de Assis, François Fénelon, Madame Guyon, Bernardo de Clairvaux, Francisco de Sales, Juliana de Norwich, Irmão Lawrence, George Fox, John Woolman, Evelyn Underhill, Thomas Merton, Frank Laubach, Thomas Kelly e muitos outros falam deste caminho mais excelente.

A Bíblia diz que João, ao receber sua visão apocalíptica (Apocalipse 1.10), encontrava-se “em espírito, no dia do Senhor”. Dar-se-ia o caso de João ser treinado numa forma de ouvir e ver, da qual nos temos esquecido? R. D. Laing escreve: “Vivemos em um mundo secular. ... Há uma profecia no livro de Amós, de um época futura e que haverá fome na terra, 'não de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do Senhor'. Esse tempo chegou. É a época presente.”

Tenhamos a coragem de unir-nos à tradição bíblica e uma vez mais aprender a antiga (não obstante contemporânea) arte da meditação. Que nos juntemos ao salmista e declaremos: “Eu, porém, meditarei nos teus preceitos” (Salmos 119.78).

Há, também, os que acham que a idéia cristã da meditação é sinônima do conceito de meditação centrada na religião Oriental. Em realidade, trata-se de mundos separados. A meditação Oriental é uma tentativa para esvaziar a mente; a meditação cristã é uma tentativa para esvaziar a mente a fim de enchê-la. As duas idéias são radicalmente diferentes

Todas as formas orientais de meditação acentuam a necessidade de afastamento do mundo. Há ênfase sobre perder a personalidade e a individualidade e fundir-se com a Mente Cósmica. Há um anseio por libertarse dos fardos e sofrimentos desta vida e ver-se colhido na felicidade que não requer esforço, suspensa, do Nirvana. A identidade pessoal perde-se numa fusão de consciência cósmica. A separação, o desligamento, é a meta final da religião Oriental. É um escape da roda miserável da existência. Não há Deus ao qual ligar-se ou de quem ouvir.

Zen e Ioga são formas populares deste método. A meditação transcendental tem as mesmas raízes budistas, mas em sua forma Ocidental é algo aberrante. Em sua forma popular, a MT é meditação para os materialistas. Não há necessidade da mínima crença no reino espiritual para praticá-la. É meramente um método de controlar as ondas cerebrais a fim de melhorar o bem-estar fisiológico e emocional. As formas mais avançadas de MT envolvem, de fato, a natureza espiritual, e então ela assume exatamente as mesmas características de todas as demais religiões orientais.

A meditação cristã vai muito além da noção de separação. Há necessidade de separação - “sabat de contemplação”, como diz Pedro de Celles, do século XII.

Mas devemos prosseguir buscando a união. O afastamento da confusão toda que nos cerca é para que tenhamos uma união mais rica com Deus e com os demais seres humanos. A meditação cristã leva-nos à inteireza interior necessária para que nos entreguemos livremente a Deus, e também leva-nos à percepção espiritual necessária para atacar os males sociais. Neste sentido, é a mais prática de todas as Disciplinas.

Há o perigo de pensar somente em termos de afastamento, conforme indicou Jesus ao contar a história do homem que se esvaziara do mal mas não se enchera do bem. “Quando o espírito imundo sai do homem... Então vai, e  leva consigo outros sete espíritos, piores do que ele, e, entrando, habitam ali; e o último estado daquele homem se torna pior que o primeiro” (Lucas 11.24- 26).

Alguns se afastam da meditação, receosos de que ela seja por demais difícil e complicada. Seria melhor deixar ao profissional que tem mais tempo explorar as regiões interiores? Absolutamente, não. Os especialistas reconhecidos neste campo nunca relatam que estão numa viagem somente para os poucos privilegiados, os gigantes espirituais. Eles ririam de tal idéia. Eles achariam ser o que estavam fazendo uma atividade humana natural - tão natural, e tão importante, quanto respirar. Dir-nos-iam que não temos necessidade de nenhum dom especial nem de poderes psíquicos. Tudo o que teríamos de fazer seria disciplinar e treinar as faculdades latentes que há dentro de nós. Qualquer pessoa capaz de abrir o poder da imaginação pode aprender a meditar. Se formos capazes de dar ouvidos a nossos sonhos, já estaremos dando os primeiros passos. Thomas Merton, que devia conhecer o assunto, escreveu: “A meditação é realmente simples; não há muita necessidade de elaborar técnicas que nos ensinem como proceder a respeito.”

Assim, pois, para que não nos extraviemos, devemos entender que não estamos nos engajando nalguma obra petulante, leviana. Não estamos solicitando o concurso de algum camareiro cósmico. O negócio é sério e até mesmo perigoso. Ele deveria demandar de nós o melhor que temos de pensamento e de energias. Ninguém deveria empreender a meditação meramente por derivativo ou porque outros a estejam praticando. Os que nela entram com tibieza, certamente vão falhar. P. T. Rorhbach escreveu: “A melhor preparação geral para a meditação bem-sucedida é uma convicção pessoal de sua importância e uma firme determinação de perseverar na prática.” Como qualquer trabalho sério, ela é mais difícil nas fases de aprendizado; uma vez que nos tornamos peritos - artífices - ela passa a fazer parte de nossos padrões de hábitos estabelecidos. “Esperar em Deus não é ociosidade”, disse Bernardo de Clairvaux, “mas trabalho maior que qualquer outro trabalho para quem não estiver habilitado.”

Há, também, os que consideram o caminho da contemplação como carente de sentido prático e totalmente fora de contato com o século vinte. Há o receio de que ela produza o tipo de pessoa que Dostoievski imortalizou em seu livro Os Irmãos Karamazov, o ascético Padre Ferapont: um homem rígido, farisaico, que por ingente esforço liberta-se do mundo, e então invoca maldições sobre este. Na melhor das hipóteses, tal meditação conduziria a outra mundanalidade insalubre que nos mantém imunes ao sofrimento da  raça humana

Tais avaliações deixam muito a desejar. Em realidade, a meditação é a única coisa que pode suficientemente reorientar nossas vidas de sorte que passamos lidar exitosamente com a vida humana. Thomas Merton escreveu: “A meditação não terá nenhum objetivo e nenhuma realidade a menos que esteja firmemente arraigada na vida.” Historicamente, nenhum grupo acentuou a necessidade de entrar nos silêncios para ouvir, mais do que os quacres; o resultado tem sido um impacto social vital que excede de muito o número dos quacres. Os próprios contemplativos eram homens e mulheres de ação. Meister Eckhart escreveu: “Ainda que a pessoa se encontrasse em arrebatamento como S. Paulo e soubesse de alguém necessitado de alimento, melhor faria alimentando essa pessoa do que permanecendo em êxtase.”

Com freqüência a meditação produzirá discernimentos profundamente práticos, quase mundanos. Advirá instrução sobre como relacionar-se com a esposa ou com o marido, sobre como lidar com este problema delicado ou com aquela situação de negócio. Mais de uma vez tenho recebido orientação sobre qual atitude tomar quando prelecionando numa sala de aula de faculdade. É maravilhoso quando uma meditação especial leva ao êxtase, mas é muito mais comum receber orientação no trato com problemas humanos comuns. Morton Kelsey disse:

 “O que fazemos com nossas vidas exteriormente, o bom cuidado que dispensamos aos outros, é tanto parte da meditação quanto aquilo que fazemos na quietude e volta para o interior. Em realidade, a meditação cristã que não produz diferença na qualidade de vida exterior do indivíduo está em curto circuito.
Pode brilhar por um momento, mas a não ser que ela resulte no encontro de relacionamentos mais ricos e mais amoráveis com outros seres humanos ou na mudança das condições do mundo que causam sofrimento, as possibilidades são de que a atividade de oração do indivíduo falhará.”Talvez a mais comum de todas as concepções errôneas é considerar a meditação como uma forma religiosa de manipulação psicológica. Ela pode ter valor em fazer baixar nossa pressão sangüínea ou em aliviar a tensão. Ela pode até proporcionar-nos introspecções significativas ajudando-nos a entrar em contato com nossa mente subconsciente. Mas a idéia de contato e comunhão reais com uma esfera espiritual de existência parece anticientífica e fantasiosamente irracional. Se você acha que vivemos em um universo puramente físico, considerará a meditação como um bom meio de obter um consistente padrão de onda cerebral alfa. (A meditação transcendental tenta projetar exatamente esta imagem, o que a torna altamente apelativa para homens e mulheres seculares modernos.) Se, porém, você acredita que vivemos em um universo criado pelo Deus pessoal e infinito que tem prazer em nossa comunhão com ele, você verá a meditação como comunicação entre o Amante e o amado. Conforme disse Alberto, o Grande: “A contemplação dos santos é inspirada pelo amor do contemplado: isto é, Deus.”

Esses dois conceitos são completamente opostos. Um confina-nos a uma experiência totalmente humana; o outro lança-nos a um encontro divino humano.

Um fala da exploração do subconsciente; o outro, de “descansar naquele a quem temos encontrado, que nos ama, que está perto de nós, que vem a nós e nos atrai para si.” Ambos parecem religiosos e até usam jargão religioso, mas o primeiro não pode, em última instância, encontrar lugar para a realidade espiritual.

Como, pois, chegamos a crer em um mundo do espírito? Mediante fé cega? De maneira nenhuma. A realidade interior do mundo espiritual está ao alcance de todos quantos estão dispostos a buscá-la. Com freqüência tenho descoberto que aqueles que tão gratuitamente difamam o mundo espiritual nunca tomaram dez minutos para investigar se tal mundo realmente existe ou não. Como qualquer outro trabalho científico, formulamos uma hipótese e a experimentamos para ver se é verdadeira ou não. Se nosso primeiro experimento falha, não nos desesperamos nem rotulamos de fraudulento todo o negócio. Reexaminamos nosso procedimento, talvez ajustemos nossa hipótese, e experimentamos de novo.

Deveríamos, pelo menos, ter a honestidade de perseverar nesta obra no mesmo grau que perseveraríamos em qualquer campo da ciência. O fato de que tantos se mostram indispostos a fazê-lo revela, não sua inteligência, mas seu preconceito


DESEJANDO A VOZ VIVA DE DEUS


Há ocasiões em que tudo dentro de nós diz “sim” a estas linhas de Frederick W. Faber:

“Sentar apenas e pensar em Deus, Oh, que alegria é! Pensar o pensamento, respirar o Nome; Maior felicidade não tem a terra.”

Mas os que meditam sabem que a mais freqüente reação é a inércia espiritual, frieza e falta de desejo. Os seres humanos parece ter uma tendência perpétua de que alguém fale com Deus por eles. Contentamo-nos em receber a mensagem de segunda mão. No Sinai, o povo clamou a Moisés: “Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não morramos” (Êxodo 20.19). Um dos erros fatais de Israel foi sua insistência em ter um rei humano em vez de descansar no governo teocrático de Deus. Podemos perceber uma nota de tristeza na palavra do Senhor: “Mas [rejeitaram] a mim, para eu não reinar sobre eles” (1 Samuel 8.7). A história da religião é a história de um esforço quase desesperado de ter um rei, um mediador, um sacerdote, um intermediário. Deste modo não precisamos, nós mesmos, de ir a Deus. Tal método poupa-nos a necessidade de mudar, pois estar na presença de Deus é mudar. Esta forma é muito conveniente porque ela nos dá a vantagem da respeitabilidade religiosa sem exigir transformação moral. Não temos necessidade de observar muito de perto o cenário de nosso país para perceber que ele está fascinado pela religião do mediador.

É por isto que a meditação nos é tão ameaçadora. Ousadamente ela nos convida a entrar na presença viva de Deus por nós mesmos. Ela diz que Deus está falando no presente contínuo e deseja dirigir-se a nós. Jesus e os escritores do Novo Testamento deixam claro que isto não é apenas para os profissionais da religião - os sacerdotes - mas para todos. Todos quantos reconhecem a Jesus Cristo como Senhor são o sacerdócio universal de Deus e como tal podem entrar no Santo dos Santos e conversar com o Deus vivo.

Parece tão difícil levar as pessoas a crer que elas podem ouvir a voz de Deus.

Membros da igreja do Salvador, em Washington, D. C., vêm fazendo experiências neste campo por algum tempo. Concluem eles: “Pensamos que somos gente do século vinte e do século vinte e um; não obstante, temos insinuações de que é possível receber instruções tão claras quanto aquela dada a Ananias. ... 'Dispõe-te e vai à rua que se chama Direita'.” Por que não? Se Deus está vivo e ativo nos negócios humanos, por que não pode sua voz ser  ouvida e obedecida hoje? Ela pode ser e é ouvida por todos quantos o conhecem como presente Mestre e Profeta.

Como recebemos o desejo de ouvir sua voz? “Este desejo de voltar-se para Deus é um dom da graça. Quem imagina que pode simplesmente começar a meditar sem orar pelo desejo e pela graça de assim fazê-lo, logo desistirá. Mas o desejo de meditar, e a graça de começar a meditar, deveriam ser tomados como uma promessa implícita de mais graças.” Buscar e receber esse “dom da graça” é a única coisa que nos manterá caminhando em direção da jornada interior.



PREPARANDO-SE PARA MEDITAR


É impossível aprender, através de um livro, a arte de meditar. Aprendemos a meditar, meditando. Contudo, sugestões simples no tempo certo podem produzir uma imensa diferença. As sugestões práticas e os exercícios de meditação nas páginas seguintes são dados na esperança de que possam ajudar na prática real da meditação. Não são leis nem tencionam limitar o leitor; são, antes, umas poucas das muitas janelas que dão para o mundo interior.

Quando se atingiu certa proficiência na vida interior, é possível praticar a meditação quase em toda parte e em qualquer circunstância. O Irmão Lawrence no século dezessete e Thomas Kelly no século vinte dão eloqüente testemunho desse fato. Tendo dito isso, porém, devemos ver a importância tanto para os principiantes como para os proficientes de reservar um parte de cada dia para a meditação formal. Se milhares incontáveis podem tomar vinte minutos duas vezes por dia para recitar um mantra, não deveríamos ter menor dedicação de estabelecer momentos para meditação.


Uma vez convencidos de que necessitamos separar momentos específicos para a contemplação, devemos prevenir-nos contra a noção de que praticar certos atos religiosos em determinadas horas significa que estamos finalmente meditando.

Esta é uma obra para a vida toda. É um trabalho de vinte e quatro horas por dia. A oração contemplativa é um modo de vida. “Orai sem cessar”, exortou Paulo (1 Tessalonicenses 5.17). Com um toque de humor Pedro de Celles observou que “aquele que ronca na noite do vício não pode conhecer a luz da contemplação”

É preciso, pois, que cheguemos a ver o quanto é central o todo de nosso dia em preparar-nos para momentos específicos de meditação. Se estivermos constantemente entusiasmados com atividade frenética, não poderemos estar atentos nos instantes de silêncio interior. Uma mente perseguida e fragmentada por assuntos externos dificilmente está preparada para a meditação. Os Pais da igreja freqüentemente falavam do Otium Sanctum: “ócio santo”. Isso quer dizer um senso de equilíbrio na vida, uma capacidade de estar em paz durante as atividades do dia, uma capacidade de descansar e separar tempo para desfrutar da beleza, uma capacidade de regular nosso próprio passo. Com nossa tendência para definir as pessoas em termos do que elas produzem, faríamos bem em cultivar o “ócio santo” com determinação no que tange às agendas de nossas entrevistas.

E quanto a um lugar para meditação? Isto será discutido em detalhe ao tratarmos da Disciplina da solitude; por ora, bastam umas poucas palavras. Procure um lugar calmo e livre de interrupção. Sem telefone por perto. Se possível, um lugar entre árvores e plantas. É melhor ter um lugar certo em vez de andar à cata de um local diferente cada dia.

Que dizer da postura? Em certo sentido a postura não faz diferença alguma; você pode orar em qualquer parte, em qualquer momento, e em qualquer posição. Noutro sentido, porém, a postura é de máxima importância. O corpo, a mente e o espírito são inseparáveis. A tensão do espírito é telegrafada em linguagem corporal. Tenho realmente visto pessoas passarem todo um culto de adoração mascando chiclete, sem a mais leve consciência da profunda tensão em que se encontram. Não somente a postura exterior reflete o estado interior, como também pode ajudar a nutrir a atitude interior de oração. Se interiormente estamos fragmentados com distrações e ansiedade, uma postura de paz e descontração, conscientemente escolhida, terá a tendência de acalmar nosso turbilhão interior.

Não há “leis” que prescrevam uma postura correta. A Bíblia contém de tudo, desde jazer prostrado no chão até estar em pé, com as mãos e a cabeça erguidas para os céus. A posição de lótus das religiões orientais é simplesmente outro exemplo - não uma lei - de postura. O melhor método seria encontrar uma posição com o máximo de conforto e com o mínimo de distração. O excelente místico do século catorze, Ricardo Rolle, preferia estar sentado, “... porque eu sabia que eu... permaneceria mais tempo... do que andando, ou em pé, ou ajoelhado.

Porque sentado estou muitíssimo à vontade, e meu coração muitíssimo elevado”.

Concordo perfeitamente, e acho melhor sentar-me numa cadeira, com as costas corretamente posicionadas na cadeira e ambos os pés apoiados no chão. Sentar-se com o corpo curvado indica desatenção e o cruzar das pernas restringe a circulação do sangue. Coloque as mãos sobre os joelhos, com as palmas voltadas para cima, num gesto de receptividade. Às vezes é bom fechar os olhos a fim de afastar as distrações e concentrar a atenção no Cristo vivo. Outras vezes é útil ponderar sobre um quadro do Senhor ou olhar lá fora as lindas árvores e plantas com a mesma finalidade. Sem levar em conta como se faz, o objetivo é concentrar a atenção do corpo, as emoções, a mente e o espírito na “glória de Deus na face de Cristo” (2 Coríntios 4.6).



COMO MEDITAR ( PRIMEIROS PASSOS )



Entra-se com muito maior facilidade no mundo interior da meditação pela porta da imaginação. Deixamos hoje de avaliar seu profundo poder. A imaginação é mais forte do que o pensamento conceitual e mais forte do que a vontade. No Ocidente, nossa tendência para endeusar os méritos do racionalismo - e ele tem mérito, sim - tem-nos levado a ignorar o valor da imaginação.

Alguns raros indivíduos talvez possam exercer a contemplação num vazio sem imagens, mas a maior parte de nós sentimos necessidade de estar mais profundamente arraigados nos sentidos. Jesus ensinou assim, fazendo constante apelo para a imaginação e para os sentidos. No seu livro Introdução à Vida Devota, Francisco de Sales escreveu:

“Por meio da imaginação confinamos nossa mente ao mistério sobre o qual meditamos, para que ela não vagueie de um lado para o outro, assim como engaiolamos um pássaro ou prendemos um falcão com sua própria correia de sorte que ele possa descansar na mão. Talvez alguém lhe diga que é melhor usar o simples pensamento de fé e conceber o assunto de uma maneira inteiramente mental e espiritual na representação dos mistérios, ou então imaginar que as coisas ocorrem em sua própria alma. Este método é sutil demais para principiantes.”


Devemos, simplesmente, convencer-nos da importância de pensar e experimentar por meio de imagens mentais. Quando crianças, isto nos vinha tão espontaneamente, mas agora, durante anos temos sido treinados a deixar de lado a imaginação, e até mesmo a temê-la. Em sua autobiografia, C. G. Jung descreve quão difícil lhe foi humilhar-se e uma vez mais jogar os jogos  de imaginação de uma criança, e fala do valor dessa experiência. Assim como as crianças precisam aprender a pensar com lógica, os adultos necessitam redescobrir a realidade mágica da imaginação.

Inácio de Loyola em sua obra Exercícios Espirituais constantemente incentivava seus leitores a visualizar as histórias do Evangelho. Todo exercício de contemplação que ele deu destinava-se a abrir a imaginação. Ele chegou a incluir uma meditação intitulada “aplicação dos sentidos”, que é uma tentativa de ajudar-nos a utilizar os cinco sentidos quando retratamos os acontecimentos do Evangelho. Seu pequeno volume de exercícios de meditação, com ênfase sobre a imaginação, causou tremendo impacto para o bem no século dezesseis.

É bom começar o aprendizado da meditação com os sonhos, uma vez que isto envolve pouco mais do que prestar atenção a algo que já estamos fazendo

Durante quinze séculos os cristãos, em esmagadora maioria, consideraram os sonhos como um meio natural pelo qual o mundo do espírito irrompia em nossas vidas. Kelsey, autor de Dreams: The Dark Speech of the Spirit (Sonhos: A Linguagem Obscura do Espírito), observa: “... todos os grandes Pais da igreja primitiva, de Justino Mártir a Ireneu, de Clemente e Tertuliano a Orígenes e Cipriano, criam que os sonhos eram um meio de revelação.”

Com o racionalismo da Renascença veio certo cepticismo a respeito dos sonhos.

Então, nos dias formativos do desenvolvimento da psicologia, Freud acentuou principalmente o aspecto negativo dos sonhos, visto que ele trabalhou quase inteiramente com doenças mentais. Daí que os homens e as mulheres modernos revelaram tendência para ignorar totalmente os sonhos, ou recear que o interesse por eles redundaria em neurose. Não há necessidade de ser assim; e, de fato, se atentarmos bem, os sonhos podem ajudar-nos a encontrar mais maturidade e saúde

Se estivermos convencidos de que os sonhos podem ser uma chave que abre a porta do mundo interior, podemos fazer três coisas práticas. Em primeiro lugar, podemos orar especificamente, pedindo a Deus que nos informe através de nossos sonhos. Devemos dizer-lhe de nossa disposição de permitir que ele nos fale deste modo. Ao mesmo tempo, é prudente orar pedindo proteção, uma vez que o abrir-nos à influência espiritual pode ser perigoso assim como proveitoso.

Simplesmente pedimos a Deus que nos cerque com a luz de sua proteção à medida que ele assiste nosso espírito

Em segundo lugar, deveríamos começar a registrar nossos sonhos. As pessoas não se lembram dos seus sonhos porque não lhes prestam atenção. Manter um diário de nossos sonhos é uma forma de levá-los a sério. É, naturalmente, tolice considerar todo sonho como profundamente significativo ou como alguma revelação de Deus. Maior tolice ainda é considerar os sonhos como apenas caóticos e irracionais. No registro dos sonhos começam a surgir certos padrões e discernimentos. Em pouco tempo é-nos fácil distinguir entre sonhos significativos e os que resultam de ter visto o último espetáculo da noite anterior

Isto conduz à terceira consideração - como interpretar os sonhos. O melhor meio de descobrir o significado dos sonhos é pedir. “Nada tendes, porque não pedis” (Tiago 4.2). Podemos confiar em que Deus trará discernimento se e quando for necessário. Às vezes convém consultar os especialistas nessas questões.

Benedict Pererius, que viveu no século dezesseis, sugere que o melhor intérprete dos sonhos é a “... pessoa muito experimentada no mundo e nos negócios da humanidade, com um amplo interesse em tudo quanto é humana, e aberta à voz de Deus”











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