CORTANDO AS CORDAS DA IMPIEDADE
1. AS DISCIPLINAS ESPIRITUAIS: PORTA DO LIVRAMENTO
“Passo pela vida como um transeunte a caminho da eternidade, feito à
imagem de Deus mas com essa imagem aviltada, necessitando de que se lhe
ensine a meditar, adorar, pensar.” - Donald Coggan, Arcebispo de Cantuária
A superficialidade é maldição de nosso tempo. A doutrina da satisfação
instantânea é, antes de tudo, um problema espiritual. A necessidade urgente
hoje não é de um maior número de pessoas inteligentes, ou dotadas, mas de
pessoas profundas.
As Disciplinas clássicas da vida espiritual convidam-nos a passar no
viver na superfície para o viver nas profundezas. Elas nos chamam para
explorar os recônditos interiores do reino espiritual. Instam conosco a que
sejamos a resposta a um mundo vazio. John Woolman aconselhou: “É bom
que vos aprofundeis, para que possais sentir e entender os sentimentos das
pessoas.
”
Não devemos ser levados a crer que as Disciplinas são para os gigantes
espirituais e, por isso, estejam além de nosso alcance; ou para os
contemplativos que devotam todo o tempo à oração e à meditação. Longe
disso.
Na intenção de Deus, as Disciplinas da vida espiritual são para seres
humanos comuns: pessoas que têm empregos, que cuidam dos filhos, que
lavam pratos e cortam grama. Na realidade, as Disciplinas são mais bem
exercidas no meio de nossas atividades normais diárias. Se elas devem ter
qualquer efeito transformador, o efeito deve encontrar-se nas conjunturas
comuns da vida humana: em nossos relacionamentos com o marido ou com a
esposa, com nossos irmãos e irmãs, ou com nossos amigos e vizinhos.
Nem deveríamos pensar nas Disciplinas Espirituais como uma tarefa
ingrata e monótona que visa a exterminar o riso da face da terra. Alegria é
nota dominante de todas as Disciplinas. O objetivo das Disciplinas é o
livramento da sufocante escravidão ao auto-interesse e ao medo. Quando a
disposição interior de alguém é libertada de tudo quanto o subjuga,
dificilmente se pode descrever essa situação como tarefa ingrata e monótona.
Cantar, dançar, até mesmo gritar, caracterizam as Disciplinas da vida espiritual.
Num importante sentido, as Disciplinas Espirituais não são difíceis.
Não precisamos estar bem adiantados em questões de teologia para praticar as
Disciplinas. Os recém-convertidos - até mesmo as pessoas que ainda não se
entregaram a Jesus - deveriam praticá-las. A exigência fundamental é suspirar por Deus. O salmista escreveu: “Como suspira a corça pelas correntes das
águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma. A minha alma tem sede de
Deus, do Deus vivo” (Salmo 42:1, 2).
Os principiantes são bem-vindos. Eu também ainda sou principiante,
especialmente depois de vários anos de praticar cada Disciplina apresentada
neste livro. Conforme disse Thomas Merton: “Não desejamos ser
principiantes.
Mas, convençamo-nos do fato de que, por toda a vida, nunca seremos
mais que principiantes!”
O Salmo 42:7 diz: “Um abismo chama outro abismo.” Talvez algures
nas câmaras subterrâneas de sua vida tenha você ouvido o chamado para um
viver mais profundo, mais pleno. Talvez você se tenha cansado das
experiências frívolas e do ensino superficial. De quando em quando você tem
captado vislumbres, insinuações de algo que ultrapassa aquilo que você tem
conhecido.
Interiormente você tem suspirado por lançar-se em águas mais
profundas.
Os que têm ouvido o distante chamado do seu íntimo e desejam
explorar o mundo das Disciplinas Espirituais, imediatamente se defrontam
com duas dificuldades.
A primeira é de ordem filosófica. A base materialista em nossa época
tornou-se tão penetrante que ela tem feito as pessoas duvidarem seriamente
de sua capacidade de ir além do mundo físico. Muitos cientistas de primeira
categoria têm ido além de tais dúvidas, sabendo que não podemos estar
confinados a uma caixa de espaço-tempo. Mas a pessoa comum é influenciada
pela ciência popular que está uma geração atrás dos tempos e é preconcebida
contra o mundo não-material.
É difícil exagerar quão saturados estamos com a mentalidade da ciência
popular. A meditação, por exemplo, se de algum modo permitida, não é
considerada como contato com um mundo espiritual real, mas como
manipulação psicológica. Geralmente as pessoas tolerarão um breve toque na
“jornada interior”, mas logo chega a hora de haver-se com os negócios reais
do mundo real. Necessitamos de coragem para ir além do preconceito de
nossa época e afirmar com os nossos melhores cientistas que existe mais do
que o mundo material. Com honestidade intelectual, deveríamos dispor-nos a
estudar e explorar este outro reino com todo o rigor e determinação que daríamos a qualquer campo de pesquisa.
A segunda dificuldade é de ordem prática. Simplesmente não sabemos
como explorar a vida interior. Isto nem sempre tem sido verdadeiro. No
primeiro século e anteriormente, não era necessário dar instruções sobre
como “praticar” as Disciplinas da vida espiritual. A Bíblia chamou o povo a
Disciplinas tais como jejum, meditação, adoração e celebração e quase não
deu instrução nenhuma sobre a forma de executá-las. É fácil de ver a razão
por quê. Essas Disciplinas eram tão freqüentemente praticadas e de tal modo
constituíam parte da cultura geral que o “como fazer” era conhecimento
comum. Jejuar, por exemplo, era tão comum que ninguém perguntaria o que
comer antes de um jejum, como quebrar um jejum, ou como evitar a vertigem
enquanto jejuava - toda a gente já sabia.
Isto não se verifica em nossa geração. Hoje existe uma ignorância
abismal dos mais simples e práticos aspectos de quase todas as Disciplinas
Espirituais clássicas. Daí que qualquer livro escrito sobre o assunto deve levar
essa necessidade em consideração e prover instrução prática sobre a mecânica
de Deus das Disciplinas. É preciso, porém, logo de início dizer uma palavra
de acautelamento: conhecer a mecânica não significa que estamos praticando
a Disciplina. As Disciplinas Espirituais são uma realidade interior e espiritual,
e a atitude interior do coração é muito mais decisiva do que a mecânica para
se chegar à realidade da vida espiritual.
A Escravidão de Hábitos arraigados
Acostumamo-nos a pensar no pecado como atos individuais de
desobediência a Deus. Isto é bem verdade até certo ponto, mas a Bíblia vai
muito mais longe.
Na sua carta aos Romanos, o apóstolo Paulo freqüentemente se refere
ao pecado como uma condição que infesta a raça humana (i. é., Romanos 3:9-
18). O pecado como condição abre seu caminho através dos “membros do
corpo”; isto é, os hábitos enraizados do corpo (Romanos 7:5 e seguintes). E
não há escravidão que possa comparar-se à escravidão de hábitos
pecaminosos arraigados.
Diz Isaías 57:20: “Os perversos são como o mar agitado, que não se
pode aquietar, cujas águas lançam de si lama e lodo.” O mar não necessita
fazer nada de especial para produzir lama e lodo; isto é o resultado de seus
movimentos naturais. É o que também se verifica conosco quando nos
achamos sob a condição de pecado. Os movimentos naturais de nossas vidas produzem lama e lodo. O pecado é parte da estrutura interna de nossas vidas.
Não há necessidade alguma de esforço especial. Não é de admirar que nos
sintamos enredados.
Nosso método comum de lidar com o pecado arraigado é lançar um
ataque frontal.
Confiamos em nossa força de vontade e determinação. Qualquer que
seja nosso problema - ira, amargura, glutonaria, orgulho, incontinência sexual,
álcool, medo - decidimos nunca mais repeti-lo; oramos contra ele, lutamos
contra ele, dispomos nossa vontade contra ele. Tudo, porém, é em vão e uma
vez mais nos encontramos moralmente falidos ou, pior ainda, tão orgulhosos
de nossa justiça exterior que “sepulcros branqueados” é uma descrição suave
de nossa condição.
Heini Arnold, em seu excelente livrinho intitulado Freedon From Sinful
Thoughts (Liberdade de Pensamentos Pecaminosos), escreve: “Desejamos
deixar perfeitamente claro que não podemos livrar e purificar nosso próprio
coração exercitando nossa própria `vontade'“.
Na carta aos Colossenses, Paulo cita algumas formas exteriores que as
pessoas usam para controlar o pecado: “não manuseies, não proves, não
toques.” E então acrescenta que estas coisas “com efeito, têm aparência de
sabedoria, como culto de si mesmo” - que frase expressiva, e como descreve
bem muita coisa de nossas vidas! No momento em que achamos que
podemos ter êxito e alcançar a vitória sobre o pecado mediante a força de
nossa vontade somente, esse é o momento em que estamos cultuando a
vontade. Não é uma ironia que Paulo tenha olhado para nossos mais
estrênuos esforços na caminhada espiritual e os tenha chamado de “culto de
si mesmo”?
A força de vontade nunca terá êxito no trato com os hábitos
profundamente arraigados do pecado. Emmet Fox escreve: “Tão-logo você
resista mentalmente a qualquer circunstância indesejável ou não buscada, por
esse próprio meio você a dotará de mais poder - poder que ela usará contra
você, e você terá esgotado seus próprios recursos nessa exata medida.” Heini
Arnold conclui: “Enquanto acharmos que podemos salvar-nos a nós mesmos
por nossa própria força de vontade, a única coisa que fazemos é tornar o mal
que há em nós mais forte do que nunca.” Esta mesma verdade tem sido
comprovada por todos os grandes escritores da vida devocional, desde S. João
da Cruz até Evelyn Underhill.
O “culto de si mesmo” talvez possa ter uma demonstração exterior de êxito por algum tempo, mas nas brechas e nas fendas de nossa vida sempre há
de revelar-se nossa profunda condição interior. Jesus descreveu tal condição
quando falou da exibição exterior de justiça dos fariseus. “Porque a boca fala
do que está cheio o coração. ... Digo-vos que de toda palavra frívola que
proferirem os homens, dela darão conta no dia de juízo” (Mateus 12:34-36).
Mediante a força de vontade as pessoas podem fazer boa figura durante
algum tempo; cedo ou tarde, porém, virá o momento desprevenido quando a
“palavra frívola” escapará, revelando o verdadeiro estado do coração. Se
estivermos cheios de compaixão, isto será revelado; se estivermos cheios de
amargura, isto também se manifestará
Não temos a intenção de que seja assim. Não temos intenção nenhuma
de explodir a ira ou de ostentar uma tenaz arrogância, mas quando estamos
com outras pessoas, aquilo que somos vem à tona. Embora tentemos ocultar
essas coisas com todas as nossas forças, somos traídos pelos olhos, pela
língua, pelo queixo, pelas mãos, pela linguagem de todo o nosso corpo. A
força de vontade não tem defesa contra a palavra frívola, contra o momento
desprevenido. A vontade tem a mesma deficiência da lei - ela pode lidar
somente com as exterioridades. Não é suficiente para operar a transformação
necessária da disposição interior.
As Disciplinas Espirituais abrem a Porta
Quando perdemos a esperança de obter a transformação interior
mediante as forças humanas da vontade e da determinação, abrimo-nos para
uma maravilhosa e nova realização: a justiça interior é um dom de Deus que
deve ser graciosamente recebido. A imperiosa necessidade de mudança dentro
de nós é obra de Deus e não nossa. É preciso que haja um trabalho real
interno, e só Deus pode operar a partir do interior. Não podemos alcançar ou
merecer esta justiça do reino de Deus; ela é uma graça concedida ao homem.
Na carta aos Romanos o apóstolo Paulo esforça-se a fim de demonstrar
que a justiça é um dom de Deus. Ele emprega o termo trinta e cinco vezes
nessa epístola, e cada vez que o emprega fá-lo com êxito pelo fato de que a
justiça não é atingida nem atingível mediante esforço humano. Uma as mais
claras afirmações é Romanos 5:17: “... os que recebem a abundância da graça
e o dom da justiça, reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus
Cristo.” Esse ensino, evidentemente, não se encontra só em Romanos mas na
Bíblia toda e se apresenta como uma das pedras angulares da fé cristã.
No momento em que captamos esta compreensão palpitante, corremos o risco de um erro no sentido oposto. Somos tentados a crer que nada há que
possamos fazer.
Se os esforços humanos terminam em falência moral (e tendo-o tentado,
sabemos que é assim), e se a justiça é um dom gratuito de Deus (conforme a
Bíblia o declara com clareza), então não é lógico deduzir que devemos esperar
que Deus venha e nos transforme? Por estranho que pareça, a resposta é
“não”. A análise é correta: o esforço humano é insuficiente e a justiça é o
dom de Deus. O que é falha é a conclusão, pois felizmente existe algo que
podemos fazer. Não precisamos agarrar-nos às pontas do dilema das obras
nem da ociosidade humanas
Deus nos deu as Disciplinas da vida espiritual como meios de receber
sua graça.
As Disciplinas permitem-nos colocar-nos diante de Deus de sorte que
ele possa transformar-nos.
O apóstolo Paulo disse: “O que semeia para a sua própria carne, da
carne colherá corrupção; mas o que semeia para o Espírito, do Espírito
colherá vida eterna” (Gálatas 6:8). O lavrador não consegue fazer germinar o
grão; tudo o que ele pode fazer é prover as condições certas para o
crescimento do grão.
Ele lança a semente na terra onde as forças naturais assumem o
controle e fazem surgir o grão. O mesmo acontece com as Disciplinas
Espirituais - elas são um meio de semear para o Espírito. As Disciplinas são o
meio de Deus plantar-nos na terra; elas nos colocam onde ele possa trabalhar
dentro de nós e transformar-nos. Sozinhas, as Disciplinas Espirituais nada
podem fazer; elas só podem colocar-nos no lugar onde algo possa ser feito.
Elas são os meios de graça de Deus. A justiça interior que buscamos não é
algo que seja derramado sobre nossas cabeças. Deus ordenou as Disciplinas
da vida espiritual como meios pelos quais somos colocados onde ele pode
abençoar-nos.
Neste sentido, seria próprio falar do “caminho da graça disciplinada”. É
“graça” porque é grátis; é “disciplinada” porque existe algo que nos cabe fazer.
Em The Cost of Discipleship (O Custo do Discipulado), Dietrich Bonhoeffer
deixa claro que a graça é grátis, mas não é barata. Uma vez que entendemos
com clareza que a graça de Deus é imerecida e imerecível, se esperamos
crescer devemos iniciar um curso de ação conscientemente escolhida, que
inclua tanto a vida individual como em grupo. Essa é a finalidade das
Disciplinas Espirituais.
Seria conveniente visualizar o que vimos estudando. Imaginemos uma
passagem estreita com um declive íngreme de cada lado. O abismo da direita
é o caminho da falência moral por meio dos esforços humanos para alcançar
a justiça.
Historicamente se tem dado a isto o nome de heresia do moralismo. O
abismo da esquerda é o caminho da falência moral pela ausência de esforços
humanos. Este tem sido denominado heresia do antinomianismo. Essa
passagem representa um caminho - as Disciplinas da vida espiritual. Este
caminho conduz à transformação interior e à cura que buscamos. Não
devemos desviar-nos para a direita nem para a esquerda, mas permanecer no
caminho. Este está cheio de sérias dificuldades, mas também conta com
incríveis alegrias. À medida que andamos neste caminho, a bênção de Deus
virá sobre nós e nos reconstruirá à imagem de seu Filho Jesus Cristo.
Devemos lembrar-nos sempre de que o caminho não produz a mudança; ele
apenas nos coloca no lugar onde a mudança pode ocorrer. Este é o caminho
da graça disciplinada
Há um ditado em teologia moral que diz que “virtude é fácil”. Isto é
verdadeiro somente até onde a obra graciosa de Deus tenha assumido o
comando de nossa disposição interior e transformado os padrões de hábitos
arraigados de nossas vidas. Enquanto isto não se realizar, a virtude é difícil,
difícil mesmo
Lutamos por exibir um espírito amável e compassivo; não obstante é
como se estivéssemos levando para dentro algo trazido do exterior. Surge
então, das profundezas interiores, a única coisa que não desejávamos: um
espírito mordaz e amargo. Contudo, uma vez que tenhamos vivido no
caminho da graça disciplinada por uma temporada, descobrimos mudanças
internas.
Não fizemos nada mais do que receber um dom, não obstante sabemos
que as mudanças são reais. Sabemos que são reais porque verificamos que o
espírito de compaixão que outrora achávamos tão difícil, é agora fácil. Na
realidade, difícil seria estar cheio de amargura. O Amor divino entrou em
nossa disposição interior e assumiu o controle de nossos padrões de hábitos.
Nos momentos desprevenidos, brota do santuário interior de nossa vida um
fluxo espontâneo de “amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade,
bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gálatas 5:22, 23). A
necessidade cansativa de ocultar dos outros aquilo que somos interiormente já
não existe.
Não temos de esforçar-nos para ser bons e generosos; somos bons e
generosos.
Difícil seria refrear-nos de ser bons e generosos, porque a bondade e a
generosidade fazem parte de nossa natureza. Assim como os movimentos
naturais de nossa vida outrora produziam lama e lodo, agora eles produzem o
fruto do Espírito. Shakespeare escreveu: “A qualidade da misericórdia não é
forçada” - nem o são quaisquer das virtudes espirituais uma vez que elas
assumam o comando da personalidade.
O Caminho da Morte: Transformar as Disciplinas em Leis
As Disciplinas Espirituais visam ao nosso bem. Elas têm por finalidade
trazer a abundância de Deus para nossa vida. É possível, contudo, torná-las
em outro conjunto de leis que matam a alma. As Disciplinas dominadas pela
lei respiram morte.
Jesus ensinou que devemos ir além da justiça dos escribas e fariseus
(Mateus 5:20). Todavia, precisamos ver que tal justiça não era coisa de
somenos. Eles estavam comprometidos em seguir a Deus numa forma para a
qual muitos de nós não estamos preparados. Um fator, contudo, era sempre
central à sua justiça: exterioridade. A justiça deles consistia em controlar as
aparências externas, muitas vezes incluindo a manipulação de outras pessoas.
Até que ponto temos ido além da justiça dos escribas e fariseus pode ser visto
no quanto nossa vida demonstra a obra interna de Deus no coração. Ela
produzirá resultados externos, mas a obra será interna. É fácil, em nosso zelo
pelas Disciplinas Espirituais, torná-las na justiça exterior dos escribas e
fariseus.
Quando as Disciplinas se degeneram em lei, elas são usadas para
manipular e controlar pessoas. Tomamos ordens explícitas e as usamos para
aprisionar outros. O resultado de tal deterioração das Disciplinas Espirituais é
orgulho e medo. O orgulho domina porque chegamos a crer que somos o
tipo certo de pessoas. O medo domina porque o poder de controlar os outros
traz consigo a ansiedade de perder o controle, e a ansiedade de ser controlado
por outros.
Se quisermos progredir no caminhar espiritual de sorte que as
Disciplinas sejam bênção e não maldição, devemos chegar, em nossas vidas,
ao lugar onde depomos a carga eterna da necessidade de dirigir os outros.
Essa necessidade, mais do que qualquer outra coisa, levar-nos-à a transformar
as Disciplinas Espirituais em leis. Uma vez que criamos uma lei, temos uma “exterioridade” pela qual podemos julgar quem está à altura e quem não está.
Sem leis, as Disciplinas são, antes de tudo, uma obra interna e é impossível
controlar uma obra interna. Quando verdadeiramente cremos que a
transformação interior é obra de Deus e não nossa, podemos dar descanso a
nossa paixão por endireitar a vida dos outros.
Devemos estar cônscios de quão rapidamente podemos agarrar esta ou
aquela palavra e transformá-la em lei. No momento em que assim
procedemos, qualificamo-nos para o severo pronunciamento de Jesus contra
os fariseus: “Atam fardos pesados (e difíceis de carregar) e os põem sobre os
ombros dos homens, entretanto eles mesmos nem com o dedo querem
movê-los” (Mateus 23:4).
Em questões assim necessitamos das palavras do apóstolo Paulo
embutidas em nossas mentes: “Não tratamos da letra, mas do Espírito. É que
a letra da lei conduz à morte da alma” (2 Coríntios 3:6, Phillips).
Ao entrarmos no mundo interior das Disciplinas Espirituais, sempre
haverá o perigo de torná-las em lei. Mas não estamos abandonados aos
nossos próprios inventos humanos. Jesus Cristo prometeu ser nosso
Professor e Guia sempre presente. Sua voz não é difícil de ser ouvida. Não é
difícil entender suas instruções. Se começarmos a calcificar o que deveria
sempre permanecer vivo e crescente, ele nos dirá. Podemos confiar em seu
ensino. Se nos desviarmos para alguma idéia errônea ou prática inaproveitável,
ele nos conduzirá de volta. Se estivermos dispostos a ouvir o Instrutor
Celestial, receberemos a instrução de que necessitamos
Nosso mundo está faminto de pessoas verdadeiramente transformadas.
Leon Tolstói observou: “Todos pensam em mudar a humanidade e ninguém
pensa em mudar a si mesmo.” Estejamos entre os que crêem que a
transformação interior de nossa vida é um alvo digno de nosso melhor
esforço.
PRIMEIRA PARTE : " CORTANDO AS CORDAS INTERIORES "
MEDITAÇÃO
“A verdadeira contemplação não é um truque
psicológico mas uma graça teológica.”
(Thomas Merton)
Na sociedade contemporânea nosso Adversário se especializa em três
coisas: ruído, pressa e multidões. Se ele puder manter-nos ocupados com
“grandeza” e “quantidade”, descansará satisfeito. O psiquiatra C. G. Jung
observou certa vez: “A pressa não é do diabo; ela é o diabo.”
Se esperamos ultrapassar as superficialidades de nossa cultura -
incluindo a cultura religiosa - devemos estar dispostos a descer aos silêncios
recriadores, ao mundo interior da contemplação. Em seus escritos, todos os
mestres da meditação esforçam-se por despertar-nos para o fato de que o
universo é muito maior do que imaginamos, que há vastas e inexploradas
regiões interiores tão reais quanto o mundo físico que tão bem conhecemos.
Falam das palpitantes possibilidades de nova vida e liberdade. Chamam-nos
para a aventura, para sermos pioneiros nesta fronteira do Espírito. Embora
possa soar estranho aos ouvidos modernos, não deveríamos envergonhar-nos
de nos matricularmos como aprendizes na escola da oração contemplativa.
CONCEPÇÕES ERRÔNEAS
Freqüentemente se indaga se é possível falar da meditação como sendo
cristã.
Não é ela antes propriedade exclusiva das religiões orientais? Sempre
que falo a um grupo sobre a meditação como Disciplina Cristã clássica, há o
inevitável franzir de sobrolhos. “Eu pensava que os adeptos da Meditação
Transcendental fossem o grupo que lidava com a meditação.” “Não venha
dizer-me que nos vai dar um mantra para recitar!”
Que a meditação seja palavra tão estranha aos ouvidos do Cristianismo
moderno é um lamentável comentário sobre o seu estado espiritual. A meditação sempre permaneceu como uma parte clássica e central da devoção
cristã, uma preparação decisiva para a obra de oração, e adjunto dessa obra.
Sem dúvida, parte do surto de interesse pela meditação Oriental se deve ao
fato de as igrejas terem abandonado o campo. Quão deprimente é, para um
estudante universitário que busca conhecer o ensino cristão sobre a meditação,
descobrir que há tão poucos mestres vivos da oração contemplativa e que
quase todos os escritos sérios sobre o assunto têm sete séculos ou mais de
idade. Não é de admirar que tal estudante se volte para o zen, para a ioga ou
para a meditação transcendental.
Certamente que a meditação não era coisa estranha aos autores das
Escrituras.
“Saíra Isaque a meditar no campo, ao cair da tarde”
(Gênesis 24.63).
“No meu leito, quando de ti me recordo, e em ti
medito, durante a vigília da noite” (Salmo 63.6).
Essas eram pessoas chegadas ao coração de Deus. Deus lhes falava, não
porque elas tivessem capacidades especiais, mas porque estavam dispostas a
ouvir. Os Salmos, praticamente, cantam das meditações do povo de Deus
sobre a lei do Senhor: “Os meus olhos antecipam as vigílias noturnas, para
que eu medite nas tuas palavras” (Salmo 119.148). O salmo introdutório do
Saltério inteiro chama o povo todo a imitar o homem “bem-aventurado”,
cujo “prazer está na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite”
(Salmo 1.2).
Os escritores cristãos através dos séculos têm falado de um modo de
ouvir a Deus, de comunicar-se com o Criador do céu e da terra, de
experimentar o Amado Eterno do mundo. Pensadores tão excelentes como
Agostinho, Francisco de Assis, François Fénelon, Madame Guyon, Bernardo
de Clairvaux, Francisco de Sales, Juliana de Norwich, Irmão Lawrence,
George Fox, John Woolman, Evelyn Underhill, Thomas Merton, Frank
Laubach, Thomas Kelly e muitos outros falam deste caminho mais excelente.
A Bíblia diz que João, ao receber sua visão apocalíptica (Apocalipse
1.10), encontrava-se “em espírito, no dia do Senhor”. Dar-se-ia o caso de
João ser treinado numa forma de ouvir e ver, da qual nos temos esquecido? R.
D. Laing escreve: “Vivemos em um mundo secular. ... Há uma profecia no
livro de Amós, de um época futura e que haverá fome na terra, 'não de pão,
nem sede de água, mas de ouvir as palavras do Senhor'. Esse tempo chegou.
É a época presente.”
Tenhamos a coragem de unir-nos à tradição bíblica e uma vez mais
aprender a antiga (não obstante contemporânea) arte da meditação. Que nos
juntemos ao salmista e declaremos: “Eu, porém, meditarei nos teus preceitos”
(Salmos 119.78).
Há, também, os que acham que a idéia cristã da meditação é sinônima
do conceito de meditação centrada na religião Oriental. Em realidade, trata-se
de mundos separados. A meditação Oriental é uma tentativa para esvaziar a
mente; a meditação cristã é uma tentativa para esvaziar a mente a fim de
enchê-la. As duas idéias são radicalmente diferentes
Todas as formas orientais de meditação acentuam a necessidade de
afastamento do mundo. Há ênfase sobre perder a personalidade e a
individualidade e fundir-se com a Mente Cósmica. Há um anseio por libertarse
dos fardos e sofrimentos desta vida e ver-se colhido na felicidade que não
requer esforço, suspensa, do Nirvana. A identidade pessoal perde-se numa
fusão de consciência cósmica. A separação, o desligamento, é a meta final da
religião Oriental. É um escape da roda miserável da existência. Não há Deus
ao qual ligar-se ou de quem ouvir.
Zen e Ioga são formas populares deste método. A meditação
transcendental tem as mesmas raízes budistas, mas em sua forma Ocidental é
algo aberrante. Em sua forma popular, a MT é meditação para os materialistas.
Não há necessidade da mínima crença no reino espiritual para praticá-la. É
meramente um método de controlar as ondas cerebrais a fim de melhorar o
bem-estar fisiológico e emocional. As formas mais avançadas de MT
envolvem, de fato, a natureza espiritual, e então ela assume exatamente as
mesmas características de todas as demais religiões orientais.
A meditação cristã vai muito além da noção de separação. Há
necessidade de separação - “sabat de contemplação”, como diz Pedro de
Celles, do século XII.
Mas devemos prosseguir buscando a união. O afastamento da confusão
toda que nos cerca é para que tenhamos uma união mais rica com Deus e
com os demais seres humanos. A meditação cristã leva-nos à inteireza interior
necessária para que nos entreguemos livremente a Deus, e também leva-nos à
percepção espiritual necessária para atacar os males sociais. Neste sentido, é a
mais prática de todas as Disciplinas.
Há o perigo de pensar somente em termos de afastamento, conforme
indicou Jesus ao contar a história do homem que se esvaziara do mal mas não
se enchera do bem. “Quando o espírito imundo sai do homem... Então vai, e leva consigo outros sete espíritos, piores do que ele, e, entrando, habitam ali; e
o último estado daquele homem se torna pior que o primeiro” (Lucas 11.24-
26).
Alguns se afastam da meditação, receosos de que ela seja por demais
difícil e complicada. Seria melhor deixar ao profissional que tem mais tempo
explorar as regiões interiores? Absolutamente, não. Os especialistas
reconhecidos neste campo nunca relatam que estão numa viagem somente
para os poucos privilegiados, os gigantes espirituais. Eles ririam de tal idéia.
Eles achariam ser o que estavam fazendo uma atividade humana natural - tão
natural, e tão importante, quanto respirar. Dir-nos-iam que não temos
necessidade de nenhum dom especial nem de poderes psíquicos. Tudo o que
teríamos de fazer seria disciplinar e treinar as faculdades latentes que há
dentro de nós. Qualquer pessoa capaz de abrir o poder da imaginação pode
aprender a meditar. Se formos capazes de dar ouvidos a nossos sonhos, já
estaremos dando os primeiros passos. Thomas Merton, que devia conhecer o
assunto, escreveu: “A meditação é realmente simples; não há muita
necessidade de elaborar técnicas que nos ensinem como proceder a respeito.”
Assim, pois, para que não nos extraviemos, devemos entender que não
estamos nos engajando nalguma obra petulante, leviana. Não estamos
solicitando o concurso de algum camareiro cósmico. O negócio é sério e até
mesmo perigoso. Ele deveria demandar de nós o melhor que temos de
pensamento e de energias. Ninguém deveria empreender a meditação
meramente por derivativo ou porque outros a estejam praticando. Os que
nela entram com tibieza, certamente vão falhar. P. T. Rorhbach escreveu: “A
melhor preparação geral para a meditação bem-sucedida é uma convicção
pessoal de sua importância e uma firme determinação de perseverar na
prática.” Como qualquer trabalho sério, ela é mais difícil nas fases de
aprendizado; uma vez que nos tornamos peritos - artífices - ela passa a fazer
parte de nossos padrões de hábitos estabelecidos. “Esperar em Deus não é
ociosidade”, disse Bernardo de Clairvaux, “mas trabalho maior que qualquer
outro trabalho para quem não estiver habilitado.”
Há, também, os que consideram o caminho da contemplação como
carente de sentido prático e totalmente fora de contato com o século vinte.
Há o receio de que ela produza o tipo de pessoa que Dostoievski imortalizou
em seu livro Os Irmãos Karamazov, o ascético Padre Ferapont: um homem
rígido, farisaico, que por ingente esforço liberta-se do mundo, e então invoca
maldições sobre este. Na melhor das hipóteses, tal meditação conduziria a
outra mundanalidade insalubre que nos mantém imunes ao sofrimento da raça humana
Tais avaliações deixam muito a desejar. Em realidade, a meditação é a
única coisa que pode suficientemente reorientar nossas vidas de sorte que
passamos lidar exitosamente com a vida humana. Thomas Merton escreveu:
“A meditação não terá nenhum objetivo e nenhuma realidade a menos que
esteja firmemente arraigada na vida.” Historicamente, nenhum grupo
acentuou a necessidade de entrar nos silêncios para ouvir, mais do que os
quacres; o resultado tem sido um impacto social vital que excede de muito o
número dos quacres. Os próprios contemplativos eram homens e mulheres
de ação. Meister Eckhart escreveu: “Ainda que a pessoa se encontrasse em
arrebatamento como S. Paulo e soubesse de alguém necessitado de alimento,
melhor faria alimentando essa pessoa do que permanecendo em êxtase.”
Com freqüência a meditação produzirá discernimentos profundamente
práticos, quase mundanos. Advirá instrução sobre como relacionar-se com a
esposa ou com o marido, sobre como lidar com este problema delicado ou
com aquela situação de negócio. Mais de uma vez tenho recebido orientação
sobre qual atitude tomar quando prelecionando numa sala de aula de
faculdade. É maravilhoso quando uma meditação especial leva ao êxtase, mas
é muito mais comum receber orientação no trato com problemas humanos
comuns. Morton Kelsey disse:
“O que fazemos com nossas vidas exteriormente, o
bom cuidado que dispensamos aos outros, é tanto
parte da meditação quanto aquilo que fazemos na
quietude e volta para o interior. Em realidade, a
meditação cristã que não produz diferença na
qualidade de vida exterior do indivíduo está em curto circuito.
Pode brilhar por um momento, mas a não ser que ela
resulte no encontro de relacionamentos mais ricos e
mais amoráveis com outros seres humanos ou na
mudança das condições do mundo que causam
sofrimento, as possibilidades são de que a atividade
de oração do indivíduo falhará.”Talvez a mais comum de todas as concepções errôneas é considerar a
meditação como uma forma religiosa de manipulação psicológica. Ela pode
ter valor em fazer baixar nossa pressão sangüínea ou em aliviar a tensão. Ela
pode até proporcionar-nos introspecções significativas ajudando-nos a entrar
em contato com nossa mente subconsciente. Mas a idéia de contato e
comunhão reais com uma esfera espiritual de existência parece anticientífica e fantasiosamente irracional. Se você acha que vivemos em um universo
puramente físico, considerará a meditação como um bom meio de obter um
consistente padrão de onda cerebral alfa. (A meditação transcendental tenta
projetar exatamente esta imagem, o que a torna altamente apelativa para
homens e mulheres seculares modernos.) Se, porém, você acredita que
vivemos em um universo criado pelo Deus pessoal e infinito que tem prazer
em nossa comunhão com ele, você verá a meditação como comunicação
entre o Amante e o amado. Conforme disse Alberto, o Grande: “A
contemplação dos santos é inspirada pelo amor do contemplado: isto é,
Deus.”
Esses dois conceitos são completamente opostos. Um confina-nos a
uma experiência totalmente humana; o outro lança-nos a um encontro divino humano.
Um fala da exploração do subconsciente; o outro, de “descansar
naquele a quem temos encontrado, que nos ama, que está perto de nós, que
vem a nós e nos atrai para si.” Ambos parecem religiosos e até usam jargão
religioso, mas o primeiro não pode, em última instância, encontrar lugar para
a realidade espiritual.
Como, pois, chegamos a crer em um mundo do espírito? Mediante fé
cega? De maneira nenhuma. A realidade interior do mundo espiritual está ao
alcance de todos quantos estão dispostos a buscá-la. Com freqüência tenho
descoberto que aqueles que tão gratuitamente difamam o mundo espiritual
nunca tomaram dez minutos para investigar se tal mundo realmente existe ou
não. Como qualquer outro trabalho científico, formulamos uma hipótese e a
experimentamos para ver se é verdadeira ou não. Se nosso primeiro
experimento falha, não nos desesperamos nem rotulamos de fraudulento todo
o negócio. Reexaminamos nosso procedimento, talvez ajustemos nossa
hipótese, e experimentamos de novo.
Deveríamos, pelo menos, ter a honestidade de perseverar nesta obra no
mesmo grau que perseveraríamos em qualquer campo da ciência. O fato de
que tantos se mostram indispostos a fazê-lo revela, não sua inteligência, mas
seu preconceito
DESEJANDO A VOZ VIVA DE DEUS
Há ocasiões em que tudo dentro de nós diz “sim” a estas linhas de
Frederick W. Faber:
“Sentar apenas e pensar em Deus,
Oh, que alegria é!
Pensar o pensamento, respirar o Nome;
Maior felicidade não tem a terra.”
Mas os que meditam sabem que a mais freqüente reação é a inércia
espiritual, frieza e falta de desejo. Os seres humanos parece ter uma tendência
perpétua de que alguém fale com Deus por eles. Contentamo-nos em receber
a mensagem de segunda mão. No Sinai, o povo clamou a Moisés: “Fala-nos
tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não morramos”
(Êxodo 20.19). Um dos erros fatais de Israel foi sua insistência em ter um rei
humano em vez de descansar no governo teocrático de Deus. Podemos
perceber uma nota de tristeza na palavra do Senhor: “Mas [rejeitaram] a mim,
para eu não reinar sobre eles” (1 Samuel 8.7). A história da religião é a história
de um esforço quase desesperado de ter um rei, um mediador, um sacerdote,
um intermediário. Deste modo não precisamos, nós mesmos, de ir a Deus.
Tal método poupa-nos a necessidade de mudar, pois estar na presença de
Deus é mudar. Esta forma é muito conveniente porque ela nos dá a vantagem
da respeitabilidade religiosa sem exigir transformação moral. Não temos
necessidade de observar muito de perto o cenário de nosso país para perceber
que ele está fascinado pela religião do mediador.
É por isto que a meditação nos é tão ameaçadora. Ousadamente ela nos
convida a entrar na presença viva de Deus por nós mesmos. Ela diz que Deus
está falando no presente contínuo e deseja dirigir-se a nós. Jesus e os
escritores do Novo Testamento deixam claro que isto não é apenas para os
profissionais da religião - os sacerdotes - mas para todos. Todos quantos
reconhecem a Jesus Cristo como Senhor são o sacerdócio universal de Deus e
como tal podem entrar no Santo dos Santos e conversar com o Deus vivo.
Parece tão difícil levar as pessoas a crer que elas podem ouvir a voz de
Deus.
Membros da igreja do Salvador, em Washington, D. C., vêm fazendo
experiências neste campo por algum tempo. Concluem eles: “Pensamos que
somos gente do século vinte e do século vinte e um; não obstante, temos
insinuações de que é possível receber instruções tão claras quanto aquela dada
a Ananias. ... 'Dispõe-te e vai à rua que se chama Direita'.” Por que não? Se
Deus está vivo e ativo nos negócios humanos, por que não pode sua voz ser ouvida e obedecida hoje? Ela pode ser e é ouvida por todos quantos o
conhecem como presente Mestre e Profeta.
Como recebemos o desejo de ouvir sua voz? “Este desejo de voltar-se
para Deus é um dom da graça. Quem imagina que pode simplesmente
começar a meditar sem orar pelo desejo e pela graça de assim fazê-lo, logo
desistirá. Mas o desejo de meditar, e a graça de começar a meditar, deveriam
ser tomados como uma promessa implícita de mais graças.” Buscar e receber
esse “dom da graça” é a única coisa que nos manterá caminhando em direção
da jornada interior.
PREPARANDO-SE PARA MEDITAR
É impossível aprender, através de um livro, a arte de meditar.
Aprendemos a meditar, meditando. Contudo, sugestões simples no tempo
certo podem produzir uma imensa diferença. As sugestões práticas e os
exercícios de meditação nas páginas seguintes são dados na esperança de que
possam ajudar na prática real da meditação. Não são leis nem tencionam
limitar o leitor; são, antes, umas poucas das muitas janelas que dão para o
mundo interior.
Quando se atingiu certa proficiência na vida interior, é possível praticar
a meditação quase em toda parte e em qualquer circunstância. O Irmão
Lawrence no século dezessete e Thomas Kelly no século vinte dão eloqüente
testemunho desse fato. Tendo dito isso, porém, devemos ver a importância
tanto para os principiantes como para os proficientes de reservar um parte de
cada dia para a meditação formal. Se milhares incontáveis podem tomar vinte
minutos duas vezes por dia para recitar um mantra, não deveríamos ter menor
dedicação de estabelecer momentos para meditação.
Uma vez convencidos de que necessitamos separar momentos
específicos para a contemplação, devemos prevenir-nos contra a noção de
que praticar certos atos religiosos em determinadas horas significa que
estamos finalmente meditando.
Esta é uma obra para a vida toda. É um trabalho de vinte e quatro
horas por dia. A oração contemplativa é um modo de vida. “Orai sem cessar”,
exortou Paulo (1 Tessalonicenses 5.17). Com um toque de humor Pedro de
Celles observou que “aquele que ronca na noite do vício não pode conhecer a
luz da contemplação”
É preciso, pois, que cheguemos a ver o quanto é central o todo de nosso dia em preparar-nos para momentos específicos de meditação. Se
estivermos constantemente entusiasmados com atividade frenética, não
poderemos estar atentos nos instantes de silêncio interior. Uma mente
perseguida e fragmentada por assuntos externos dificilmente está preparada
para a meditação. Os Pais da igreja freqüentemente falavam do Otium
Sanctum: “ócio santo”. Isso quer dizer um senso de equilíbrio na vida, uma
capacidade de estar em paz durante as atividades do dia, uma capacidade de
descansar e separar tempo para desfrutar da beleza, uma capacidade de
regular nosso próprio passo. Com nossa tendência para definir as pessoas em
termos do que elas produzem, faríamos bem em cultivar o “ócio santo” com
determinação no que tange às agendas de nossas entrevistas.
E quanto a um lugar para meditação? Isto será discutido em detalhe ao
tratarmos da Disciplina da solitude; por ora, bastam umas poucas palavras.
Procure um lugar calmo e livre de interrupção. Sem telefone por perto. Se
possível, um lugar entre árvores e plantas. É melhor ter um lugar certo em vez
de andar à cata de um local diferente cada dia.
Que dizer da postura? Em certo sentido a postura não faz diferença
alguma; você pode orar em qualquer parte, em qualquer momento, e em
qualquer posição. Noutro sentido, porém, a postura é de máxima importância.
O corpo, a mente e o espírito são inseparáveis. A tensão do espírito é
telegrafada em linguagem corporal. Tenho realmente visto pessoas passarem
todo um culto de adoração mascando chiclete, sem a mais leve consciência da
profunda tensão em que se encontram. Não somente a postura exterior
reflete o estado interior, como também pode ajudar a nutrir a atitude interior
de oração. Se interiormente estamos fragmentados com distrações e ansiedade,
uma postura de paz e descontração, conscientemente escolhida, terá a
tendência de acalmar nosso turbilhão interior.
Não há “leis” que prescrevam uma postura correta. A Bíblia contém de
tudo, desde jazer prostrado no chão até estar em pé, com as mãos e a cabeça
erguidas para os céus. A posição de lótus das religiões orientais é
simplesmente outro exemplo - não uma lei - de postura. O melhor método
seria encontrar uma posição com o máximo de conforto e com o mínimo de
distração. O excelente místico do século catorze, Ricardo Rolle, preferia estar
sentado, “... porque eu sabia que eu... permaneceria mais tempo... do que
andando, ou em pé, ou ajoelhado.
Porque sentado estou muitíssimo à vontade, e meu coração muitíssimo
elevado”.
Concordo perfeitamente, e acho melhor sentar-me numa cadeira, com
as costas corretamente posicionadas na cadeira e ambos os pés apoiados no
chão. Sentar-se com o corpo curvado indica desatenção e o cruzar das pernas
restringe a circulação do sangue. Coloque as mãos sobre os joelhos, com as
palmas voltadas para cima, num gesto de receptividade. Às vezes é bom
fechar os olhos a fim de afastar as distrações e concentrar a atenção no Cristo
vivo. Outras vezes é útil ponderar sobre um quadro do Senhor ou olhar lá
fora as lindas árvores e plantas com a mesma finalidade. Sem levar em conta
como se faz, o objetivo é concentrar a atenção do corpo, as emoções, a mente
e o espírito na “glória de Deus na face de Cristo” (2 Coríntios 4.6).
COMO MEDITAR ( PRIMEIROS PASSOS )
Entra-se com muito maior facilidade no mundo interior da meditação
pela porta da imaginação. Deixamos hoje de avaliar seu profundo poder. A
imaginação é mais forte do que o pensamento conceitual e mais forte do que
a vontade. No Ocidente, nossa tendência para endeusar os méritos do
racionalismo - e ele tem mérito, sim - tem-nos levado a ignorar o valor da
imaginação.
Alguns raros indivíduos talvez possam exercer a contemplação num
vazio sem imagens, mas a maior parte de nós sentimos necessidade de estar
mais profundamente arraigados nos sentidos. Jesus ensinou assim, fazendo
constante apelo para a imaginação e para os sentidos. No seu livro Introdução
à Vida Devota, Francisco de Sales escreveu:
“Por meio da imaginação confinamos nossa mente ao
mistério sobre o qual meditamos, para que ela não
vagueie de um lado para o outro, assim como
engaiolamos um pássaro ou prendemos um falcão com
sua própria correia de sorte que ele possa descansar
na mão. Talvez alguém lhe diga que é melhor usar o
simples pensamento de fé e conceber o assunto de
uma maneira inteiramente mental e espiritual na
representação dos mistérios, ou então imaginar que as
coisas ocorrem em sua própria alma. Este método é
sutil demais para principiantes.”
Devemos, simplesmente, convencer-nos da importância de pensar e
experimentar por meio de imagens mentais. Quando crianças, isto nos vinha
tão espontaneamente, mas agora, durante anos temos sido treinados a deixar
de lado a imaginação, e até mesmo a temê-la. Em sua autobiografia, C. G.
Jung descreve quão difícil lhe foi humilhar-se e uma vez mais jogar os jogos de imaginação de uma criança, e fala do valor dessa experiência. Assim como
as crianças precisam aprender a pensar com lógica, os adultos necessitam
redescobrir a realidade mágica da imaginação.
Inácio de Loyola em sua obra Exercícios Espirituais constantemente
incentivava seus leitores a visualizar as histórias do Evangelho. Todo exercício
de contemplação que ele deu destinava-se a abrir a imaginação. Ele chegou a
incluir uma meditação intitulada “aplicação dos sentidos”, que é uma tentativa
de ajudar-nos a utilizar os cinco sentidos quando retratamos os
acontecimentos do Evangelho. Seu pequeno volume de exercícios de
meditação, com ênfase sobre a imaginação, causou tremendo impacto para o
bem no século dezesseis.
É bom começar o aprendizado da meditação com os sonhos, uma vez
que isto envolve pouco mais do que prestar atenção a algo que já estamos
fazendo
Durante quinze séculos os cristãos, em esmagadora maioria,
consideraram os sonhos como um meio natural pelo qual o mundo do
espírito irrompia em nossas vidas. Kelsey, autor de Dreams: The Dark Speech
of the Spirit (Sonhos: A Linguagem Obscura do Espírito), observa: “... todos
os grandes Pais da igreja primitiva, de Justino Mártir a Ireneu, de Clemente e
Tertuliano a Orígenes e Cipriano, criam que os sonhos eram um meio de
revelação.”
Com o racionalismo da Renascença veio certo cepticismo a respeito dos
sonhos.
Então, nos dias formativos do desenvolvimento da psicologia, Freud
acentuou principalmente o aspecto negativo dos sonhos, visto que ele
trabalhou quase inteiramente com doenças mentais. Daí que os homens e as
mulheres modernos revelaram tendência para ignorar totalmente os sonhos,
ou recear que o interesse por eles redundaria em neurose. Não há necessidade
de ser assim; e, de fato, se atentarmos bem, os sonhos podem ajudar-nos a
encontrar mais maturidade e saúde
Se estivermos convencidos de que os sonhos podem ser uma chave que
abre a porta do mundo interior, podemos fazer três coisas práticas. Em
primeiro lugar, podemos orar especificamente, pedindo a Deus que nos
informe através de nossos sonhos. Devemos dizer-lhe de nossa disposição de
permitir que ele nos fale deste modo. Ao mesmo tempo, é prudente orar
pedindo proteção, uma vez que o abrir-nos à influência espiritual pode ser
perigoso assim como proveitoso.
Simplesmente pedimos a Deus que nos cerque com a luz de sua
proteção à medida que ele assiste nosso espírito
Em segundo lugar, deveríamos começar a registrar nossos sonhos. As
pessoas não se lembram dos seus sonhos porque não lhes prestam atenção.
Manter um diário de nossos sonhos é uma forma de levá-los a sério. É,
naturalmente, tolice considerar todo sonho como profundamente significativo
ou como alguma revelação de Deus. Maior tolice ainda é considerar os
sonhos como apenas caóticos e irracionais. No registro dos sonhos começam
a surgir certos padrões e discernimentos. Em pouco tempo é-nos fácil
distinguir entre sonhos significativos e os que resultam de ter visto o último
espetáculo da noite anterior
Isto conduz à terceira consideração - como interpretar os sonhos. O
melhor meio de descobrir o significado dos sonhos é pedir. “Nada tendes,
porque não pedis” (Tiago 4.2). Podemos confiar em que Deus trará
discernimento se e quando for necessário. Às vezes convém consultar os
especialistas nessas questões.
Benedict Pererius, que viveu no século dezesseis, sugere que o melhor
intérprete dos sonhos é a “... pessoa muito experimentada no mundo e nos
negócios da humanidade, com um amplo interesse em tudo quanto é humana,
e aberta à voz de Deus”
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