O CHAMADO
"Indo eles caminho fora, alguém lhe disse: Seguir-te-ei para onde quer que fores. Mas Jesus lhe respondeu: A s raposas têm seus covis, e asaves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça. A outro disse Jesus: Segue-me! Ele, porém, respondeu:Permite-me ir primeiro sepultar meu pai, Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Tu, porém, vai e prega oreino de Deus. Outro lhe disse: Seguir-te-ei, Senhor; mas deixa-me primeiro despedir-me dos de casa. Mas Jesus lhe replicou: Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus." (Lucas 9.57-62)
a) O primeiro discípulo se oferece ele próprio para seguir Jesus; ele não foi chamado. A resposta de Jesus adverte o entusiasta de que ele não sabe o que faz. Não o pode, de fato, saber.
1. Discipulado exige o que há de melhor em um homem
2. Uma bela impressão intelectual de Jesus não é o bastante para segui-lo
3. Estava entusiasmado,para seguir Jesus é necessário conversão e arrependimento
b) O segundo discípulo era casual
1. Seguia Jesus à distância,isso não é o bastante
2. Discípulo tem que ser leal,menos que isso não é o bastante ( mais que a amigos e familia)
3. Discípulo tem compromisso com Jesus e não com o ordinário
4. Ser discípulo é ser um nazireu
c) O terceiro era um discípulo em formação
1. Não pode haver prática procrastinadora em um discípulo
2. Não pode largar seu posto e sua patente
3. Não pode haver indecisão ou hesitação num discípulo
4. Um discípulo precisa ter atenção total (arar)para não ser desqualificado
É esse o sentido da resposta na qual se mostra ao seguidor a vida com Jesus como ela realmente é.
Aqui fala aquele que está a caminho da cruz, cuja vida inteira é descrita no Credo Apostólico numa única palavra: “padeceu”.
Ninguém pode desejar isso por escolha própria.
Ninguém pode chamar a si mesmo, diz Jesus, e suas palavras ficam sem resposta.
O abismo entre a oferta espontânea ao discipulado e o verdadeiro discipulado permanece aberto.
Mas, quando é o próprio Jesus que chama, ele constrói a ponte que transpõe o abismo mais profundo.
O segundo discípulo quer enterrar o pai antes de seguir Jesus.
A lei humana o prende. Ele sabe o que quer e o que deve fazer.
Antes, porém, deve cumprir a lei, e só então poderá seguir Jesus.
Interpõe-se aqui, entre a pessoa chamada e Jesus, um mandamento patente da lei. A isso o chamado de Jesus se contrapõe veementemente, não admitindo que, logo naquele momento, algo se interponha entre Jesus e aquele que foi chamado, mesmo que seja o que exista de maior e de mais sagrado, mesmo que seja a lei. Naquele momento, por causa de Jesus, a lei que visava impedir a concretização do chamado tem de ser violada, pois esta já não tem o direito de se interpor entre Jesus e a pessoa chamada. Assim, Jesus opõe-se à lei e ordena o discipulado. Só Cristo pode falar desse modo. É dele a última palavra; o outro não pode contestar. Esse chamado, essa graça, é irresistível.O terceiro entende o discipulado como o primeiro, como oferta que só ele próprio pode fazer, como programa de vida por ele mesmo escolhido. Mas, ao contrário do primeiro, julga-se no direito de impor condições. Com isso, entra em total contradição. Quer pôr-se à disposição de Jesus, ao mesmo tempo que interpõe algo entre Jesus e si mesmo: “mas deixa-me primeiro...”. Quer segui-lo, porém quer criar ele próprio as condições para o discipulado. É, para ele, uma possibilidade de cuja realização faz parte o cumprimento de exigências e condições preestabelecidas. Assim, o discipulado torna-se algo acessível e compreensível para o ser humano. Primeiro, faz-se uma coisa, depois, faz-se outra. Tudo tem seu tempo apropriado. O discípulo mesmo se põe à disposição, mas achando-se, por isso, no direito de impor condições. Fica claro que, nesse momento, o discipulado deixa de ser discipulado; transforma-se em programa humano a ser realizado segundo meu próprio julgamento e que posso justificar por meio da razão e da ética. O terceiro discípulo, portanto, deseja ingressar no discipulado, porém no momento em que o aceita condicionalmente mostra não desejar mais ser discípulo. O modo como fez a própria oferta anula o discipulado, pois este não tolera quaisquer condições que possam se interpor entre Jesus e o que obedece. Entra em contradição não apenas com Jesus, mas também consigo. Não quer o que Jesus quer, e também não quer o que ele mesmo quer. Julga a si próprio, discorda de si mesmo, e tudo isso se expressa em “mas deixa-me primeiro...”. A resposta de Jesus confirma figurativamente esse conflito interior, que acaba por excluir o discipulado: “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus”.Ser discípulo significa dar determinados passos. Já o primeiro passo, que é consequência imediata do chamado, separa o discípulo de sua existência anterior. Assim, o chamado ao discipulado cria imediatamente uma nova situação. É absolutamente impossível conciliar a existência anterior com o discipulado. A princípio, isso era bem visível. O publicano teve de abandonar a coletoria; Pedro teve de deixar as redes para trás, a fim de seguir Jesus. Segundo nosso modo de entender, podería ter havido, já naquela época, outras possibilidades. Por exemplo, Jesus podería ter disponibilizado ao publicano um novo conhecimento de Deus e permitido que ele continuasse em sua antiga situação. Isso teria sido possível, se Jesus não fosse o Filho de Deus que se fez humano. Uma vez que Jesus, todavia, é o Cristo, tudo tinha de ficar evidente desde o início, isto é, que sua mensagem não é uma nova doutrina, mas a criação de uma nova maneira de ser. Tratava-se de realmente caminhar com Jesus. Estava claro para a pessoa que era chamada que, para ela, só havia uma possibilidade de fé em Jesus: abandonar tudo e seguir o Filho de Deus que se fez humano.A partir do primeiro passo, o discípulo se vê na situação em que a fé se torna possível. Se não seguir o Mestre, ficará para trás e, assim, não aprenderá a crer. Aquele que recebe o chamado deve deixar a situação em que se encontra, impossibilitado de crer, para outra em que, acima de tudo, possa crer. Esse passo não tem em si qualquer valor programático; justifica-se somente pela comunhão com Cristo, estabelecida no momento da decisão. Enquanto Levi continuasse na coletoria, e Pedro, junto às redes no lago, poderíam seguir exercendo honrada e fielmente sua profissão, e poderíam ter o antigo ou o novo conhecimento de Deus; mas, se quisessem aprender a ter fé em Deus, deveríam seguir o Filho de Deus que se fez humano e caminhar com ele.Antes, era diferente. Podiam viver na reclusão e no anonimato do campo, realizando suas tarefas, cumprindo as leis e esperando o Messias. Agora, porém, ele já estava lá, e seu chamado era anunciado. Crer, nesse momento, já não significava ficar em silêncio e aguardar, mas sim ir com ele no discipulado. Agora, seu chamado ao discipulado destruía quaisquer vínculos anteriores e os transformava em união exclusiva com Jesus Cristo, por amor a ele. Agora, era necessário derrubar todas as pontes, dar o passo para a insegurança infinita, a fim de reconhecer o que Jesus exige e o que ele oferece. Se Levi continuasse em seu trabalho na alfândega, poderia ter sido aproveitado por Jesus como seu ajudante para o que fosse necessário, porém não o teria reconhecido como único Senhor em cujas mãos deveria depositar toda a sua vida; não teria, portanto, aprendido a ter fé. É necessário criar a situação em que se pode crer em Jesus, o Deus que se fez humano, o tipo de situação impossível, em que tudo se volta para uma única coisa, isto é, a palavra de Jesus. Pedro tem de saltar do barco e andar sobre as águas revoltas a fim de vivenciar isso e, assim, perceber sua impotência diante da onipotência de seu Senhor. Se não tivesse descido daquele barco, não teria aprendido a ter fé. A situação completamente impossível e eticamente irresponsável — no caso essa sobre o mar revolto — teve de ser criada para que a fé se tornasse possível. O caminho para a fé passa pela obediência ao chamado de Cristo. Esse passo é fundamental, do contrário o chamado de Jesus se perde no vazio e, com ele, todo suposto discipulado; sem esse passo ao qual Jesus chama, torna-se entusiasmo enganoso.É grande a dificuldade para se diferenciar uma situação em que a fé é possível de outra em que ela não o é. Em primeiro lugar, é preciso ficar muito claro que nunca se pode reconhecer ou descobrir na própria situação de que natureza ela é. Somente o chamado de Jesus a classifica como situação em que a fé é possível. Em segundo lugar, a situação em que a fé é possível nunca é criada pelo ser humano. O discipulado não é uma oferta criada pelo ser humano; apenas o chamado é capaz de criar essa situação. Em terceiro lugar, essa situação nunca contém em si um valor próprio; ela se justifica somente pelo chamado. Por último e principalmente, também essa situação em que a fé é possível sempre e somente se torna possível na fé.O conceito de situação em que a fé se torna possível nada mais é que a paráfrase da circunstância em que os dois enunciados seguintes não só têm validade, como são igualmente verdadeiros: Só o que crê é obediente, e Só o obediente é que crê.Trata-se de uma perda significativa da fidelidade à Bíblia quando se expressa o primeiro enunciado sem o segundo. Só o que crê é obediente — é assim que queremos entender. Dizemos que a obediência resulta da fé, assim como todo bom fruto vem de uma árvore boa. Primeiro é a fé, e só então a obediência. Caso se queira comprovar que a justificação vem pela fé somente, sem a necessidade do ato de obediência, estaríamos, na verdade, diante da premissa necessária e irrefutável de tudo o mais. Se, com isso, queira se estabelecer alguma ordem cronológica em que primeiro se tem fé e só depois se exige obediência, estariam, portanto, fé e obediência separadas uma da outra, e isso daria margem à pergunta de natureza patentemente prática: quando devemos começar a obedecer? Assim, a obediência fica separada da fé. Por causa da justificação, a fé e a obediência devem ficar separadas uma da outra, mas essa separação não deve jamais destruir a unidade de ambas, que reside no fato de a fé só existir na obediência, e nunca sem a obediência, e de que a fé é tão somente fé no ato da obediência.Por causa da impropriedade do discurso da obediência como consequência da fé, e para chamar a atenção à unidade indissolúvel entre fé e obediência, deve-se acrescentar à ideia “Só o que crê é obediente” um segundo enunciado: “Só o obediente é que crê”. Se, na primeira, a fé é premissa da obediência, na segunda, a obediência é premissa da fé. Exatamente da mesma forma que a obediência é considerada consequência da fé, também deve ser considerada premissa da fé.Só o obediente é que crê. É preciso praticar a obediência a uma ordem concreta, a fim de que possa haver fé. Um primeiro passo no caminho da obediência tem de ser dado, para que a fé não se transforme em ilusão piedosa imposta pelo próprio indivíduo, ou seja, em graça barata. Tudo depende do primeiro passo, que se diferencia qualitativamente de todos os que vêm na sequência. O primeiro passo de obediência exige que Pedro deixe as redes para trás e salte do barco; exige que o jovem abandone sua riqueza. A fé só se torna possível nessa nova existência que a obediência criou.Esse primeiro passo, portanto, deve ser visto como a obra externa que consiste na troca de um modo de existência por outro. Tal passo qualquer um pode dar; o ser humano é livre para isso. É um ato possível no âmbito da justitia civilis [justiça civil], em que o ser humano é livre. Pedro não pode converter a si mesmo, mas pode deixar as redes para trás. Essencialmente, exige-se, nos Evangelhos, com o primeiro passo, um ato que comprometerá o resto da vida do indivíduo. A Igreja Romana ordenava esse passo apenas como possibilidade extraordinária da vida monástica, enquanto para os demais crentes bastaria a disposição de se submeter incondicionalmente à Igreja e a seus preceitos. A importância desse primeiro passo também é reconhecida de modo significativo nos escritos confessionais luteranos: uma vez afastado fundamentalmente o perigo de um mal-entendido sinergístico, pode-se e deve-se dar espaço àquele primeiro ato externo que não se pode deixar de fazer no caso da fé, isto é, o passo em direção à Igreja, onde a mensagem da salvação é proclamada. Esse passo pode ser dado com toda a liberdade.
Venha para a Igreja! É por meio de sua liberdade humana que você pode fazê-lo. Pode sair de casa aos domingos e ir para o culto. Se não o fizer, por livre vontade afasta-se do local onde a fé é possível. Assim, os escritos confessionais luteranos revelam ter conhecimento de que existe uma situação em que a fé é possível, e outra em que ela não o é. Embora fique bem escondido esse conhecimento, quase como se fosse motivo de vergonha, ele continua disponível como conhecimento sobre o significado do primeiro passo na qualidade de ato externo.Assegurado esse conhecimento, é necessário dizer, em segundo lugar, que o primeiro passo, ato de todo externo, é e continuará a ser obra inútil da lei e que, em si, jamais conduz a Cristo. Como ato externo, a nova existência permanece tal qual a anterior; na melhor das hipóteses, tornar-se-á uma nova lei existencial, um novo estilo de vida, mas que nada tem a ver com a nova vida em Cristo. O bêbado que renuncia ao álcool e o rico que distribui seu dinheiro libertam-se do álcool e do dinheiro, mas não de si mesmos. Não conseguem livrar-se da escravidão de si próprios, e provavelmente continuam mais escravos que antes. O que foi feito anteriormente ainda exerce poder sobre eles. Embora seja inegociável essa renúncia ao que se fez antes, ela não basta para afastar o discípulo da morte, da desobediência e da impiedade. Se, por acaso, entendermos nosso primeiro passo como premissa da graça, da fé, então já seremos declarados culpados por nossas próprias obras e totalmente excluídos da graça. Assim, tudo que costumamos chamar de convicção, boa intenção, tudo que a Igreja Romana chama de facere quod in seest [faça o que está ao seu alcance], está incluído na obra externa. Se dermos o primeiro passo com a intenção de nos colocarmos numa situação em que a fé se torna possível, então essa possibilidade de crer nada mais é que uma obra, uma nova possibilidade de vida no âmbito da antiga existência; desse modo, por ser completamente mal entendida, continuamos na descrença.Todavia, é necessário que essa obra externa seja realizada, e temos de nos colocar na situação em que a fé se torna possível. Precisamos dar esse passo. O que isso significa? Significa que só daremos esse passo corretamente se o encararmos não como obra nossa que desejamos ver praticada, mas somente como aquilo que é praticado em obediência à palavra de Jesus Cristo, que para isso nos chama. Pedro sabe que não pode saltar do barco por sua vontade; seu primeiro passo já significaria seu afogamento, e portanto ele diz: “Manda-me ir ter contigo, por sobre as águas”, ao que Cristo responde: “Vem”. Assim, Cristo deve ter antes chamado, e só com base em sua palavra é que o passo pode ser dado. Esse chamado é sua graça, que chama da morte para a nova vida de obediência. Agora, porém, que Cristo chamou, cabe a Pedro saltar do barco para ir até ele. Na realidade, portanto, o primeiro passo da obediência já é um ato de fé na palavra de Cristo. Mas a fé seria completamente mal entendida como fé se, a partir disso, se chegasse à conclusão de que o primeiro passo não é mais necessário, pois a fé já está ali, de qualquer modo. Em contraponto a isso, deve-se ousar dizer o enunciado: primeiro, é preciso dar o passo da obediência, antes mesmo que possa haver fé. O desobediente não pode crer.\bcê se queixa de não poder ter fé? Ninguém deve se surpreender de não poder crer enquanto deliberadamente se recusar ou se opuser, em alguma circunstância, a aceitar o mandamento de Jesus. Não quer submeter a esse mandamento uma paixão pecaminosa, uma inimizade, uma esperança, os planos de sua vida, a razão? Não se surpreenda se não receber o Espírito Santo, se não conseguir orar, se sua preces por fé caírem no vazio! Vá, antes, a seu irmão e faça as pazes com ele, abandone o pecado que o mantém cativo, e poderá crer novamente! Se rejeitar a palavra de ordem de Deus, também não receberá sua palavra de graça. Como é que quer encontrar a comunhão daquele de quem você propositadamente foge e com quem evita tratar de qualquer assunto? O desobediente não pode crer; só o obediente é que crê.É assim que o chamado da graça de Jesus Cristo ao discipulado torna-se lei severa: Faça isto! Abandone aquilo! Salte do barco e venha até Jesus! Àquele que usa sua fé ou sua falta de fé como desculpa de sua desobediência efetiva ao chamado, Jesus diz: Primeiro, seja obediente, pratique o ato externo, deixe para trás o que o prende, abandone o que o separa da vontade de Deus! Não diga que não tem fé para isso; você não a terá enquanto permanecer na desobediência, enquanto não quiser dar o primeiro passo. Não diga: Eu já tenho fé, portanto não preciso mais dar o primeiro passo. \bcê não tem fé enquanto não der esse primeiro passo e porque não quer dá-lo; além disso, porém, também porque persiste na falta de fé que se esconde detrás da aparência de uma fé humilde. É maldosa artimanha responsabilizar a falta de obediência pela falta de fé, e a falta de fé, pela falta de obediência. A desobediência do “crente” ocorre justamente ao confessar sua falta de fé no instante mesmo em que a obediência lhe é exigida, e ao barganhar sutilmente com essa confissão (Mc 9.24). Se você crê, dê o primeiro passo; ele conduz a Jesus Cristo! Se não crê, dê igualmente o passo; é assim que lhe foi ordenado! Não se aplica a você a questão sobre fé ou falta de fé, mas sim a obediência que lhe foi ordenada e de imediato deve ser cumprida. Nela está a situação em que a fé se torna possível e existe de fato.Portanto, não existe algo em que você pode crer, mas é Jesus Cristo que cria para você a situação em que a fé se lhe torna possível. É necessário chegar a essa situação, para que a fé seja fé verdadeira, e não ilusão autoimposta. Justamente por se tratar só da verdadeira fé em Jesus Cristo, por só a fé ser o único objetivo, agora e sempre (“de fé em fé”, Rm 1.17), é que essa situação é indispensável. Quem contestar isso de modo rápido e demasiado protestante deve perguntar a si próprio se não é a graça barata que ele defende; pois, na realidade, os dois enunciados, se postos lado a lado, não se tornarão obstáculo para a fé verdadeira; mas, se compreendidos separadamente, tornam-se impedimento ainda maior para ela. Só o que crê é obediente — diz-se ao obediente em situação de fé. Só o obediente é que crê — diz-se ao crente em situação de obediência. Isolando o primeiro enunciado, o crente será entregue à graça barata, isto é, à condenação. Isolando o segundo enunciado, o crente será entregue às obras, ou seja, também à condenação.A partir deste ponto, abordemos um pouco do trabalho pastoral. É extremamente importante, para quem exerce esse ofício, que suas palavras sejam fundamentadas no conhecimento dos dois enunciados. Para ele, deve estar claro que a queixa sobre a falta de fé resulta, muitas vezes, da desobediência consciente, ou já inconsciente, e que a essa desobediência corresponde facilmente o consolo da graça barata. Contudo, a desobediência permanece intacta, e a mensagem da graça serve de consolo com o qual o próprio desobediente alivia seu sofrimento e torna-se o perdão dos pecados que ele outorga a si mesmo. A pregação, porém, torna-se vazia, e ele já não a ouve. E, mesmo que perdoe os próprios pecados milhares de vezes, não poderá crer no perdão verdadeiro, pois este, na verdade, nunca lhe foi dado. A falta de fé alimenta-se da graça barata porque deseja persistir na desobediência. É essa uma situação frequente no trabalho pastoral de nossos dias. Resulta daí que, ao outorgar a si mesmo o perdão dos pecados, o indivíduo persiste na desobediência e, desse modo, alega não poder conhecer o bem e o mandamento de Deus, por considerá-los questões ambíguas, que permitem interpretações diversas. A consciência da desobediência, a princípio muito clara, turva-se cada vez mais, até finalmente tornar-se pura obstinação. Nesse ponto, o próprio desobediente enredou-se e emaranhou-se de tal modo que já não pode ouvir a Palavra. Com efeito, a fé se torna impossível. Ocorrerá, então, entre o obstinado e o pastor o provável diálogo: “Não consigo ter fé.” “Escute a palavra, ela lhe é anunciada!” “Eu a escuto, mas ela nada significa para mim, parece-me vazia, entra por um ouvido e sai pelo outro.” “\bcê não quer ouvir.” “Claro que quero.” Chega-se, assim, ao ponto em que o diálogo é interrompido, porque o pastor já não sabe o que dizer. Conhece apenas aquele enunciado: só o que crê é obediente. E esse enunciado não é suficiente para ajudar o desobediente obstinado que não tem nem pode ter essa fé. O pastor parece estar diante do maior dos enigmas: Deus dá a fé a alguns, e a nega a outros. Com isso, desiste de curar a alma do obstinado, que acaba por isolar-se e, conformado, lamenta sua aflição. Mas é justamente esse o ponto mais importante da conversa, em que deve haver uma mudança radical. Nesse momento, abandona-se a argumentação, e as perguntas e aflições do descrente passam a não ser mais levadas tão a sério. Agora, o que se levará cada vez mais a sério é aquele que tenta se esconder detrás de suas perguntas e aflições. Oportunidade, portanto, para destruir a fortaleza que o obstinado construiu para defender-se, usando o enunciado “só o obediente é que crê”. Assim, a conversa é interrompida, e o pastor prossegue dizendo: “\bcê é desobediente, recusa a obediência a Cristo, quer preservar para si um pouco de controle. Não consegue ouvir a Cristo porque é desobediente, não consegue ter fé na graça porque não quer obedecer. \bcê se agarra a algum lugar de seu coração contra o chamado de Cristo. Sua aflição é seu pecado”. Agora, o próprio Cristo entra em cena e ataca o demônio que se alojava no outro e que, até então, se escondia por detrás da graça barata. Agora, tudo depende de o pastor ter engatilhado, para uso imediato, os dois enunciados: só o obediente é que crê, e só o que crê é obediente. Em nome de Jesus, o pastor tem de chamar à obediência, ao ato, à realização do primeiro passo. “Abandone o que o prende e siga-o!” Nesse momento, tudo depende desse passo. A posição assumida pelo desobediente tem de ser derrubada, pois nela Cristo não pode ser ouvido. O fugitivo tem de sair do esconderijo que construiu para si próprio; somente lá fora ele pode ver, ouvir, crer novamente como um ser humano livre. É verdade que, diante de Cristo, nada se ganhe por a obra ter sido realizada, pois, em si, é apenas obra inócua. Mesmo assim, Pedro teve de saltar do barco e andar sobre o mar revolto para que pudesse crer.Em resumo, a verdade é esta: por meio do enunciado “só o que crê é obediente”, o ser humano envenenou-se com a graça barata. Persiste na desobediência e consola-se no perdão que ele a si mesmo outorga, fechando-se assim à Palavra de Deus. O ataque à fortaleza fracassa enquanto se continuar a repetir esse enunciado atrás do qual ele se esconde. Tem de haver uma mudança; o outro, o obstinado, tem de ser chamado à obediência: só o obediente é que crê!
Será que, assim, alguém pode acabar desencaminhado para o caminho das obras? De maneira nenhuma: mostrando-lhe que sua fé não é fé, ele será liberto do emaranhado em que se encontra. Ele tem de ser liberto para poder tomar a decisão e, assim, o chamado de Jesus à fé e ao discipulado tornar-se audível novamente para ele.Com essa discussão, entramos no âmago da história do jovem rico.E eis que alguém, aproximando-se, lhe perguntou: Mestre, que farei eu de bom, para alcançar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Por queme perguntas acerca do que é bom? Bom só existe um. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. E ele lhe perguntou:Quais? Respondeu Jesus: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não dirás falso testemunho; honra a teu pai e a tua mãe e amarás oteu próximo como a ti mesmo. Replicou-lhe o jovem: Tudo isso tenho observado; que me falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres serperfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. Tendo, porém, o jovem ouvido estapalavra, retirou-se triste, por ser dono de muitas propriedades.Mateus 19.16-22A pergunta do jovem sobre a vida eterna é a pergunta sobre a salvação, a única pergunta séria que se pode fazer. Mas não é fácil fazê-la corretamente. Isso se comprova no fato de que o jovem, ao fazer essa pergunta decisiva, desejava, na verdade, perguntar algo bem diferente e que efetivamente foge do verdadeiro problema. Sim, ele dirige sua indagação ao “Mestre”. Deseja ouvir a opinião, o conselho, o juízo do “Mestre”, do grande doutrinador, a respeito dessa pergunta. Com isso, revela duas coisas: primeiro, que, a seu ver, a pergunta é extremamente importante, e Jesus deve ter algo de significativo a dizer sobre isso. Em segundo lugar, porém, espera que o “Mestre”, o grande doutrinador, faça uma declaração importante, mas não espera por uma ordem divina que imponha uma ação. Para o jovem, a pergunta sobre a vida eterna é algo sobre o que ele deseja conversar e discutir com o “Mestre”. Mas, logo de início, as palavras de Jesus desarticulam suas intenções: “Por que me perguntas acerca do que é bom? Bom só existe um”. A pergunta já revelou seu coração. Ele viera para conversar sobre a vida eterna com o bom rabino, mas, na verdade, percebe, com essa pergunta, que não se encontra diante de um “Mestre” humano, mas perante o próprio Deus. Portanto, não receberá resposta alguma do Filho de Deus que não aponte um caminho claro para o mandamento do Senhor Único. Não receberá a resposta de algum “Mestre” que meramente acrescente uma opinião pessoal à vontade já revelada de Deus. Jesus remete ao único bom Deus, demonstrando assim ser o Filho perfeitamente obediente do Pai. Se, portanto, aquele que pergunta está ele próprio diante de Deus, está sendo imediatamente desmascarado como quem foge ao mandamento revelado, do qual já tinha conhecimento. O jovem conhece os mandamentos; mas, não se satisfazendo com eles, tenta deles se esquivar. Sua pergunta revela uma piedade fantasiosa que ele mesmo escolheu para si. Por que não se dá por satisfeito com o mandamento revelado? Por que age como se já não soubesse, há muito, qual é a resposta à sua pergunta? Por que pretende culpar Deus por sentir-se deixado na ignorância com relação a essa questão decisiva da vida? Assim, o jovem já está preso e a ponto de ser julgado perante o tribunal. Partindo dessa pergunta descompromissada sobre a salvação, ele é chamado de volta à obediência aos mandamentos revelados.Segue uma segunda tentativa de fuga. A resposta do jovem é outra pergunta: “Quais?”. Nela oculta-se o próprio Satanás. Era a única possibilidade de fuga para quem se via assim preso. Claro que o jovem conhecia os mandamentos; mas quem poderia dizer qual deles lhe seria o mais adequado naquele momento? A revelação dos mandamentos é ambígua e obscura, diz o jovem. Ele não vê os mandamentos; vê apenas a si próprio, seus problemas, seus conflitos. Dá às costas ao mandamento patente de Deus e volta-se para o âmbito interessante, inegavelmente humano, do “conflito ético”. Não que seja falso seu conhecimento desse conflito, mas é errado fazer uso dele para contrariar os mandamentos de Deus. Os mandamentos, aliás, foram revelados exatamente para pôr fim ao conflito ético. O conflito ético como consequência ética primordial do ser humano após a queda representa, ele próprio, a oposição do ser humano a Deus. Foi a serpente que, no Paraíso, plantou esse conflito no coração do primeiro ser humano. “É assim que Deus disse?” (Gn 3.1). O ser humano é afastado do mandamento claro e da obediência simples e infantil pela dúvida ética que insinua que o mandamento ainda carece de explanação e interpretação. “É assim que Deus disse?” O próprio ser humano teria de decidir o que é bom, embasado em seu conhecimento do bem e do mal e ouvindo a voz da consciência. O mandamento teria, assim, múltiplos sentidos, e a vontade de Deus seria que o ser humano o interpretasse e o explicasse e decidisse em liberdade.Desse modo, já se recusou a obediência ao mandamento. Em lugar da ação simples, surgiu o pensamento dúplice. O ser humano de consciência livre gloria-se contra o filho da obediência. O apelo ao conflito ético é a recusa da obediência; é o retorno da realidade divina para a possibilidade humana, da fé para a dúvida. Assim, ocorre o inesperado: a pergunta mesma pela qual o jovem procura mascarar sua desobediência desvenda-o como ele verdadeiramente é: um indivíduo sob o pecado. Essa revelação consuma-se por meio da resposta de Jesus. Ao enumerar os mandamentos revelados de Deus, ele os atualiza, confirmando-os, portanto, como mandamentos de Deus. Uma vez mais, o jovem é revelado no confronto. Esperava escapar por meio de uma conversa sem compromisso a respeito da vida eterna, na esperança de que Jesus lhe oferecesse uma solução para os conflitos éticos. Em vez disso, não se discute mais a pergunta; o assunto agora é o próprio jovem. A única resposta ao problema do conflito ético é o próprio mandamento de Deus e, com ele, a exigência, agora indiscutível, da obediência. O diabo somente tem uma solução a oferecer para o conflito ético, que é a seguinte: continue perguntando e, desse modo, estará desobrigado de obedecer. Jesus não tem como alvo o problema do jovem, mas o próprio jovem. Tampouco leva tão a sério o conflito ético que, para o jovem, é dos mais preocupantes. Para Jesus, só uma coisa importa, a saber, que o jovem finalmente ouça o mandamento e obedeça. É exatamente aí, onde o conflito ético requer ser levado a sério, onde atormenta e subjuga o ser humano, porque o impede de chegar ao ato libertador da obediência, é precisamente nesse ponto que toda a sua incrédula impiedade deve ser desmascarada como desobediência definitiva. Séria é apenas a ação obediente que põe fim ao conflito e o destrói, libertando-nos para sermos filhos de Deus. É a esse diagnóstico divino que o jovem é apresentado.Por duas vezes o jovem foi confrontado com a verdade da Palavra de Deus. Não pode mais fugir do mandamento de Deus; está claro, o mandamento é evidente, e deve ser obedecido! Porém— isso ainda não é suficiente! “Tudo isso tenho observado; que me falta ainda?” Ao responder dessa forma, o jovem se mostra convencido de sua sinceridade, como estivera a respeito de suas preocupações anteriores. É justamente aí que reside sua obstinação contra Jesus. Ele conhece os mandamentos e os tem observado, mas põe em dúvida que constituam toda a vontade de Deus; deve haver algo mais, algo extraordinário, especial, e é isso que ele deseja cumprir. O mandamento revelado de Deus é incompleto, diz o jovem rico, na derradeira tentativa de fugir do verdadeiro mandamento, de afirmar sua autossuficiência e, portanto, de poder decidir por conta própria sobre o bem e o mal. O mandamento, então, é reafirmado, mas, ao mesmo tempo, é atacado frontalmente. “Tudo isso tenho observado; que me falta ainda?” Aqui, o evangelho de Marcos acrescenta: “E Jesus, fitando-o, o amou...” (Mc 10.21). Jesus reconhece que o jovem se fechou, desesperançado, à palavra viva de Deus, que ele, com toda a seriedade, com todo o seu ser, se revoltou contra o mandamento vivo, contra a obediência simples. Ele quer ajudar o jovem, pois o ama. Assim, dá-lhe uma última resposta: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, veme segue-me”.Na resposta ao jovem, deve-se observar três circunstâncias. A primeira: agora é o próprio Jesus que ordena, o mesmo Jesus que havia pouco apontara ao jovem não o “Mestre”, mas o único que é bom, Deus; passa a fazer uso da autoridade de dizer a última palavra e mandamento. O jovem precisa reconhecer que diante dele está o Filho de Deus. Foi essa condição de Jesus, oculta ao jovem, que lhe permite apontar para o Pai, revelando a perfeita união entre o Filho e o Pai. É essa mesma união que dá legitimidade para que Jesus pronuncie o mandamento do Pai. Isso deve ter ficado muito claro para o jovem, quando ouviu o chamado de Jesus ao discipulado. Aí está a súmula de todos os mandamentos: o jovem deve viver em comunhão com Cristo, o Cristo que é a finalidade dos mandamentos, o Cristo que está diante dele e o chama. Já não é possível fugir para a ilusão do conflito ético. O mandamento é claro: “Siga-me”.A segunda circunstância: o chamado ao discipulado necessita ainda de esclarecimentos, a fim de haver total clareza. É preciso impedir que o jovem novamente procure interpretar o discipulado como uma aventura ética, como uma possibilidade, um estilo de vida extremamente interessante, mas revogável, se a ocasião assim exigir. O discipulado, portanto, continuaria mal interpretado se o jovem o visse como o desfecho de suas ações e questionamentos, um acréscimo ao que veio antes, um complemento e acabamento, uma melhoria do que se realizara até então. Para que não reste dúvidas, é necessário criar uma situação que impossibilite o voltar atrás, isto é, uma situação irrevogável que, ao mesmo tempo, esclareça que não se trata, em hipótese alguma, de um mero acréscimo ao que já se havia feito. Essa situação da qual não se pode fugir foi criada com o chamado de Jesus à pobreza voluntária. É a circunstância existencial, o aspecto pastoral do episódio. O objetivo é ajudar o jovem a enfim entender corretamente e a obedecer per feitamente. A situação nasce do amor de Jesus por aquele jovem É apenas o elo entre o caminho que o jovem até então percorrera e o discipulado. Mas atenção: ela não se equivale ao discipulado propriamente dito, e também não é o primeiro passo no discipulado, mas sim a obediência dentro da qual o discipulado pode efetivamente se realizar. Primeiro, o jovem deve sair e vender tudo que possui e doá-lo aos pobres, e apenas depois seguir para o discipulado. A finalidade é o discipulado, e o caminho para o discipulado, nesse caso, é o da pobreza voluntária.
A terceira circunstância: à pergunta do jovem sobre o que ainda lhe falta, Jesus assim responde: “Se queres ser perfeito...”. Isso poderia dar a impressão de que se trata, afinal, de um acréscimo ao que ele até então já havia realizado. E não deixa de ser um acréscimo, mas é um no qual já está incluída a anulação do que se realizara no passado. O jovem, até então, não era perfeito, pois não só entendera mal, como também cumprira mal os mandamentos. É só agora, no discipulado, que pode entender e cumpri-los corretamente, porque Jesus Cristo o chamou para isso. Ao responder à pergunta do jovem, Jesus a tira das mãos dele. O jovem lhe perguntara sobre o caminho para a vida eterna, e Jesus responde: Eu o chamo; isso é tudo.O jovem procurava uma resposta à sua pergunta. A resposta é: Jesus Cristo. O jovem desejava ouvir a palavra do “Mestre” e, agora, reconhece que essa palavra é o próprio homem a quem perguntara. O jovem está diante de Jesus, o Filho de Deus, e esse é o encontro pleno. Nessa situação, há apenas “sim” ou “não”, obediência ou desobediência. A resposta do jovem é “não”. Triste, foi embora dali, desiludido e enganado em sua esperança, incapaz de desvencilhar-se do passado. Ele tinha muitos bens. O chamado ao discipulado não revela, aqui, nenhum outro significado além do próprio Jesus Cristo, o compromisso e a comunhão com ele. No entanto, a existência do discípulo não consiste na adoração entusiástica de um bom mestre, mas, isto sim, na obediência ao Filho de Deus.A história do jovem rico tem sua exata paralela na introdução à parábola do bom samaritano.E eis que certo homem, intérprete da lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vidaeterna? Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito na Lei? Como interpretas? A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todoo teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Então,Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e viverás. Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meupróximo?Lucas 10. 25-29A pergunta do intérprete da lei é idêntica à do jovem Neste caso, porém, constata-se, desde o início, que na verdade se trata de uma armadilha. Para o ardiloso intérprete, a resposta já está clara antecipadamente; ela deveria culminar no dilema do conflito ético. A resposta de Jesus é igualmente idêntica àquela dada ao jovem O homem que pergunta no fundo já sabe a resposta, mas, ao perguntar, quer esquivar-se à obediência ao mandamento de Deus. Resta-lhe somente a informação: “faze isto e viverás”.Assim procedendo, Jesus desqualifica o intérprete da lei. Ainda há, porém, como na situação do jovem rico, a possibilidade de fuga para o conflito ético por meio de outra pergunta: “Quem é o meu próximo?”. Desde então, ao longo dos tempos, a pergunta do ardiloso intérprete, aparentemente ingênua e ignorante mas de fato traiçoeira, vem sendo repetida inúmeras vezes, fazendo-se passar de pergunta séria e racional de um ser humano que busca o conhecimento. Verdade seja dita, seu contexto não foi adequadamente interpretado. Toda a história do bom samaritano constituí, de fato, uma ação de defesa de Jesus contra essa pergunta satânica, destruindo-a ao mesmo tempo. Trata-se de pergunta sem fim e sem resposta. Ela surge do indivíduo que “é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, difamações, suspeitas malignas” (lTm 6.4). É uma pergunta dos arrogantes “que aprendem sempre e jamais podem chegar ao conhecimento da verdade”, que “tendo forma de piedade, [negam-lhe], entretanto, o poder” (2Tm 3.5). São os incapazes de crer, que fazem perguntas porque “têm cauterizada a própria consciência” (lTm 4.2), porque não conseguem ser obedientes à Palavra de Deus. “Quem é o meu próximo?” Existe uma resposta a essa pergunta, se é meu irmão na carne, meu conterrâneo, meu vizinho ou meu inimigo? Não se poderia afirmar ou negar tanto uma coisa como outra, com o mesmo direito? O resultado de tal pergunta não é o dilema e a desobediência? Sim, essa pergunta é a revolta contra o próprio mandamento de Deus. É meu desejo ser obediente, mas Deus não me diz como fazê-lo. O mandamento de Deus é ambíguo, deixa-me em eterno conflito eterno. A pergunta: “O que devo fazer?” foi o primeiro engano. A resposta é: Obedeça ao mandamento que você conhece. Não fique perguntando, mas faça! A pergunta: “Quem é o meu próximo?” é a pergunta derradeira do desespero ou da autoconfiança com a qual o desobediente se justifica. A resposta é: \bcê mesmo é seu próximo. Vá e seja obediente em seu ato de amor. Ser próximo não é qualidade do outro, mas é o direito que o outro tem sobre mim; nada mais que isso. A todo momento, em toda situação, sou chamado a agir; é de mim que se exige obediência. Literalmente, não resta tempo para questionar sobre a qualificação do outro. Tenho de agir e tenho de obedecer, sou eu quem deve ser o próximo para o outro. E, então, você pergunta mais uma vez, aterrorizado, se não deveria primeiro ter conhecimento e refletir sobre como agir — quanto a isso, só há uma resposta: Eu não posso saber e refletir a não ser na própria ação, pois já de início me reconheço como sendo aquele que foi chamado. Só posso aprender o que é obediência enquanto obedeço, e não ao fazer perguntas. É só na obediência que posso reconhecer a verdade. O chamado de Jesus atinge o conflito da consciência e do pecado e nos liberta para a simplicidade da obediência. O jovem rico foi chamado por Jesus à graça do discipulado; já o ardiloso intérprete da lei foi mandado de volta ao mandamento.