Marcos 14:1 –
16:1-8)
INTRODUÇÃO
A leitura da Paixão de Jesus
se constitui capaz de gerar efeitos na vida do fiel leitor ou da comunidade de fé que a lê.
A
Paixão, o sofrimento de Jesus, o Filho de Deus, pode ser compreendida nos tempos de hoje
em consonância à vida de inúmeros homens e mulheres, os povos crucificados, que
clamam por justiça e solidariedade, a fim de serem descidos de suas escandalosas cruzes.
A
Paixão de Jesus, em sua pragmática mais profunda e genuína, visa à adesão de fé em Jesus
e lança os cristãos a percorrerem seu caminho, o caminho da cruz.
Em Marcos, o
Ressuscitado é aquele que precede seus discípulos e toda Igreja no caminho da Galileia do
mundo (Marcos 16:7), convidando-nos a refigurar nossa práxis pastoral à sua imagem.
Portanto, o evangelho marcano se destaca, desde os primórdios da fé cristã, como uma
narrativa-convite ao não esquecimento de Jesus e à fé em sua ação salvífica no coração da
humanidade.
CONTEXTUALIZAÇÃO
“ O suor de
uma vida humana laboriosa, conflitiva,
irrequieta ,conduzida, porém, por um
amor que ultrapassa o próprio coração
daqueles que viveram e escreveram a
história:isso é viver COM+PAIXÃO ”
Está acontecendo uma redescoberta do evangelho de Marcos , que, por longo tempo, esteve negligenciado entre os teólogos. Este evangelho, ainda hoje, nos toca por sua
simplicidade, clareza e concisão.
Ler o evangelho marcano tendo em vista
outra perspectiva, não mais direcionada apenas para o texto, o autor, a composição ou as
fontes históricas que formataram o texto, mas seus olhares se voltaram para a maneira com
que o texto foi elaborado e para os efeitos que o leitor, o interlocutor do texto, pode
vivenciar a partir de sua leitura. A preocupação da análise narrativa voltou-se para o polo
do leitor e não se fixou apenas no texto, catalisando energias para pensar
o leitor do texto, o mundo que ele é capaz de construir com a ajuda do mundo do texto.
A escolha do evangelho de Marcos, a narrativa da Paixão de Jesus, em
especial,amadureceu ao longo devido o desejo de percorrer essa jornada de Jesus. Trata-se
de uma empatia misteriosa,satisfeita no texto de Marcos pela
singular clareza do segundo evangelho. Uma narrativa rápida, concisa, coerente com o
objetivo do narrador: dar a conhecer Jesus de Nazaré, o Filho de Deus.
O método semiótico, que identifica, no
diálogo entre o texto e o leitor, os sinais e fenômenos que o texto permite visualizar,convida-nos a dialogar mais com o texto bíblico em si. O método
será apenas o caminho; o nosso fim, nossa meta sempre será o efeito que o texto provocará
em nós, e perceber as inquietações que este relato pode causar no leitor, que
busca se comunicar com ele:
Que mundo o leitor poderá construir ao entrar em contato,
como alteridade, com o mundo da Paixão de Jesus?
Ao
propor a leitura de um relato bíblico, estamos em contato com um texto, um corpo textual,
fruto de uma época, fragmento de uma História. Trata-se do retrato de uma realidade
presente na construção dos personagens, que delineiam e matizam as realidades
multifacetadas, apresentando o ponto de vista do narrador. Tal realidade se encontra no
evangelho de Marcos.
O intercâmbio de
experiências existentes entre os que viveram com Jesus e o narrador do evangelho e, por
conseguinte, a experiência intercambiada entre o narrador e o leitor, que entra em contato
com Marcos, em todo o tempo e lugar.
Vamos buscar perceber a importância da identidade narrativa na relação entre o relato e seu leitor, pois o texto se comunica com o leitor e lhe propõe um mundo, no qual ele
é convidado a adentrar e buscar refigurar sua vida conforme o mundo do texto.
Há, desta
forma, uma relação dialógica entre o texto, que é a comunicação de um mundo, e o leitor,
que, ao lê-lo, pode se identificar e ainda refigurar sua existência a partir dele.
1. ANÁLISE NARRATIVA DA PAIXÃO ( MARCOS 14:1–16:1-8
A narrativa se constitui em um método que supõe os efeitos do texto,
isto é, a pragmática do texto sobre o leitor e sobre os ouvintes. Trata-se de
observar os efeitos que o relato da Paixão de Jesus, segundo Marcos, exerce sobre aquele
que o lê: o leitor.
1.1 O ENREDO
A narrativa da Paixão é uma teologia da cruz, na qual Jesus narra a si mesmo
como Filho de Deus que se doa para a remissão de muitos, de todos os que nele creem. A cruz é o
critério hermenêutico a partir do qual tentamos compreender a Revelação de Deus.Os dados anexos à narração do Evangelho devem ser interpretados à luz da cruz;
não somente a morte de Jesus, mas igualmente suas palavras e seus atos.
A tradição manuscrita oferece seis versões diferentes para o final do segundo
evangelho.
Contudo, optar pela tradicional atestada do século XII; a antiga versão siríaca sinaítica e os importantes
manuscritos das versões georgiana, armeniana e etiopiana.( Marcos 16:9-20, embora seja considerado o segundo final do
evangelho, não será comentado por razões metodológicas)
Pode-se compreender Marcos 14 a 161-8 como o Livro da Paixão a partir de uma questão relevante como produto da tradição selecionada por Marcos:o relato da Paixão se
distingue do restante do Evangelho, que narra acontecimentos sucessivos cronologicamente,como no restante das tradições sinóticas, encontram-se tradições isoladas, podendo ser chamadas
de perícopes.(unidade narrativa é formada por quatro critérios: tempo, espaço, personagens e temática.O narrador cria personagens, produz diálogos, inventa situações, monta
esquemas, integra elementos, serve-se de inúmeros tipos de informações, dando-lhes unidade
narrativa.
A razão pela qual o cristianismo
primitivo tinha interesse especial nos acontecimentos dos últimos dias de Jesus,levou Marcos a interessar-se pela Paixão como motivo crucial de sua
narrativa,fazendo-a melhor articulada.
PERSONAGENS:
1: autoridades;
2: Jesus;
3: personagens actanciais;
4: discípulo (s);
5: Pilatos;
6: prisioneiros;
7: multidão;
8: centurião;
9: mulheres (discípulas);
10: personagens que retratam o divino).
CARACTERIZAÇÃO DOS PERSONAGENS:
Há quatro personagens fundamentais ou coletivos na trama do segundo
evangelho:
Jesus, as autoridades, os discípulos e o povo.
Jesus é o personagem
protagonista.
As autoridades, que são os antagonistas, são compreendidas como um grupo
com um só personagem, pois os diversos grupos que se opõem a Jesus compartilham traços
similares e mantêm um papel continuado na trama.
Os discípulos podem ser tratados como
um único personagem e se relacionam com Jesus como “os discípulos” ou “os Doze”.
Por
fim, as multidões atuam como personagens secundários, podendo constituir a quarta
personagem no evangelho de Marcos
JESUS :
O personagem protagonista da intriga narrativa é Jesus.
Trata-se de um
personagem que age conforme o itinerário de suas opções, com verdadeira autonomia.
Marcos narra tudo aquilo que Jesus fez.
Em Marcos, Jesus se dirige a
Jerusalém; é ungido em Betânia e depois segue em direção a Jerusalém; é entregue aos
poderosos: é traído, preso, torturado; é assassinado e, por fim, pela ação divina de seu Pai,
é ressuscitado da morte.
Este é o caminho percorrido por Jesus desde sua chegada a Jerusalém até o anúncio de que ele estaria vivo na Galileia, precedendo e confirmando os
discípulos na fé.
Jesus de Nazaré é a face visível da Paixão, retrato de sua
própria Paixão. É a vida de Jesus, sobremaneira seu martírio, que interessa ao narrador de
Marcos: Jesus é quem suscita, alimenta e reveste o enredo da Paixão proposto por Marcos.
Em seu relato final, observamos um protagonista ativo e atípico que não se deixa esquivar
de sua missão no encontro com a cruz em Jerusalém.
Jesus dá sentido ao relato da Paixão
proposto pelo narrador, de modo que sem ele a mensagem marcana não teria significação.
Desse modo, seguindo o espaço de identificação com o
personagem Jesus, aberto pela narrativa, é enorme. Jesus contagia o leitor do evangelho
convidando-o a segui-lo até a cruz.
Em torno de Jesus, o personagem central, se encontra o personagem coprotagonista:
Deus-Pai, de modo que tudo o que Jesus realiza, na trama de Marcos, é com a
anuência de Deus. Por meio da ressurreição, ele é resgatado da morte e de seu aguilhão,
tornando-se centro e clímax do evangelho.
OS PERSONAGENS COADJUVANTES
Todos estão em sintonia com
o projeto da Paixão de Jesus, segundo Marcos.
São aqueles que aparecem ,
levando o sentido ou o significado do enredo até seu desfecho e cumprimento.
Desde
Simão, o leproso, até às mulheres que o seguem em direção a Jerusalém, passando por José
de Arimateia; todos eles são personagens coadjuvantes: personagens que dão significado
aos acontecimentos relativos à vida de Jesus.
Os discípulos estão relacionados a Jesus e,
sem ele, não adquirem autonomia na narrativa.
Tal relação com Jesus está entretecida pelo
narrador.
Pedro, embora negando Jesus, continua relacionado a ele, o que demonstra que
todo discípulo que se afasta do mestre pode negá-lo também. Pedro desaparece do enredo
com um ato de arrependimento: o choro.
Por sua vez, Judas, o traidor de Jesus, evidencia
que mesmo cumprindo um papel actancial, perde-se totalmente na trama a partir do
momento da traição. Por isso, ele deixa a cena, em Marcos, sem nenhuma outra menção, apenas sumindo – como se dissesse que sua missão havia sido cumprida: trair e entregar
Jesus com um beijo.
PERSONAGENS ANTAGONISTAS
São todos os personagens que se
opõem à vida de Jesus como manifestação da vontade e do projeto de Deus.
Desde os
escribas, sumo sacerdotes e anciãos do povo até Pilatos e Judas Iscariotes, são todos
aqueles que fazem oposição à ação salvífica anunciada e vivida por Jesus no evangelho
marcano.
A trama descortina que o Filho de Deus tinha opositores, tanto os representantes
religiosos como os políticos; além de ser hostilizado pela multidão, que prefere Barrabás a
ele. Esses personagens evidenciam o plano diabólico de execução de Jesus: seu fim, sua
morte.
Entre os personagens oponentes e antagônicos no cenário político-cultural,
destacam-se: Pilatos, o procurador romano da Judeia e Jerusalém ; Caifás, sumo sacerdote
– nomeado por Roma e responsável por ela – junto com os sumos sacerdotes, os anciãos e
o restante do concílio nacional do “Sinédrio”. Estes últimos governavam a Judeia e
Jerusalém diretamente e administravam o Templo com o intuito de manter a ordem e
garantir o aporte dos tributos aos superiores romanos.
PERSONAGENS ACTANCIAIS
São aqueles que exercem uma “função necessária para
a realização da transformação que está no centro da narrativa.
Um personagem actancial, de aspecto sutil, porém significativo, pode ser
encontrado constituído no homem com a bilha de água sobre a cabeça (Mc 14,13). Ele é
anunciado por Jesus e servirá para a preparação da cena da última ceia com os discípulos.
Este homem vem para esse nicho de personagens, pois exerce uma importante atitude:
ceder sua sala de jantar para Jesus celebrar a Páscoa com os Doze.
Jesus envia
dois de seus discípulos até ele: “Parti à cidade, e encontrar-vos-á um homem carregando
uma bilha de água. Segui-o e onde ele entrar, dizei ao dono da casa que ‘o Mestre diz: onde
está a minha sala em que comerei a páscoa com meus discípulos?(13-14). Jesus diz
ainda que ele “vos mostrará uma grande sala de cima , arrumada, pronta, e
lá preparareis para nós”.
A mulher que unge Jesus em Betânia, na casa de Simão, o leproso (14:3-9),
também exerce um papel importante na narrativa. Ela unge Jesus para a morte,
antecipando, de forma concreta, o que as mulheres almejavam em Mc 16:1.
As mulheres,
Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, além de Salomé, não chegam a embalsamar o
corpo de Jesus, pois ele já não estava mais no sepulcro.
O personagem Simão, o leproso,
poderia passar despercebido, pois, não exerce nenhum papel actancial. Ele, apenas traz,
vinculado ao seu nome, o termo leproso , e isto “serve de endereço para
situar a cena e o contexto da unção.
Outro personagem actancial é o anônimo traidor da última ceia, que
aparentemente revela um jogo de enigma da parte do narrador. No final, contudo, Judas
Iscariotes também exerce o papel actante, uma função “necessária”, dando um novo matiz
à vida de Jesus, ao entregá-lo à morte.
Outro personagem significante, em sentido
negativo, é Pilatos, que autoriza a condenação de Jesus. Também o centurião, em Mc 15,39, desempenha um papel actante, anunciando que Jesus era verdadeiramente o Filho de
Deus: ele atesta a filiação divina de Jesus, dando um significado a tudo o que Ele vinha
revelando na trama do segundo evangelho.
Já em 15:21, no momento em que Jesus estava levando sua cruz para o
Calvário, aparece na cena um homem, chamado Simão Cireneu, pai de Alexandre e Rufo,
que ajuda Jesus a carregar a cruz. Ele exerce um papel decisivo, tornando-se, mesmo que
por imposição, solidário a Jesus em seu suplício.
Em 15:43-46, aparece outro personagem simpático a Jesus que exerce uma
ação fundamental. Trata-se de José de Arimateia, que, embora esteja também no rol dos
personagens coadjuvantes, exerce uma função actancial, pedindo para Pilatos o corpo de
Jesus e o sepultando em um lugar privado. Ele exerce uma transformação na cena, pois
leva o corpo de Jesus para um sepulcro e será lá que se desenrolará a cena da ressurreição.
Em Mc 16:5, o jovem vestido de branco, que anuncia a ressurreição de Jesus,
exerce o último e mais significativo papel actancial, afirmando que aquele que estava
morto não jaz mais na destruição, mas foi ressuscitado e precede os seus discípulos na
Galileia (Mc 16:7b). Esse jovem tem traços de figura teofânica, pois expressa a divindade,
confirmando o Ressuscitado. Nesta cena “a substituição do corpo de Jesus por este ‘jovem’
é o que forma um acontecimento chocante”. Ele anuncia às mulheres a ressurreição de
Jesus. Ele está sentado à direita, em sentido de autoridade; sua túnica é branca, em
expressão de vida, aludindo talvez à transfiguração de Jesus, e sua missão é diaconal,
pois tem um papel particular de anunciar. Ele, reiterando, parece estar em sintonia com o divino, tal como no relato da visão sobre a montanha, em Mc 9:33. Este jovem parece
performatizar a própria mensagem da ressurreição, uma realidade sempre nova, ou seja,
rejuvenescedora .
Anteriormente, em Mc 14:51-52, o narrador aludiu a um jovem que seguia
Jesus, envolto em lençol; ele foi detido, mas fugindo nu, deixou o lençol. Tal jovem pode aludir aquele jovem no sepulcro (16:5). Ambos estão
vestidos. Um, porém, estava envolto em um lençol ; o jovem no sepulcro estava
vestido com uma túnica branca . Os termos gregos lençol e túnica são
distintos. O primeiro jovem, em Mc 14:51, não exerce no relato da Paixão (14:1–16:1-8)
nenhuma mudança expressiva, diferentemente de outros personagens actantes, como a
mulher que unge Jesus (14:3-9), Simão Cirineu (15:21), que ajuda a levar a cruz de Jesus
ou, ainda, José de Arimateia, que sepulta o corpo de Jesus (15:46). O segundo jovem, em
16:5, como já vimos, exerce um papel preponderante: anuncia às mulheres no sepulcro que
Jesus não está mais lá, mas Ressuscitou da morte e precede os seus na Galileia.
PERSONAGENS FIGURANTES
Alguns personagens são figurantes e não exercem força
expressiva no evangelho marcano.
Trata-se dos que aparecem na cena sem nomes,
correspondendo ao coletivo.
Um exemplo é a multidão, que não sabia discernir os
acontecimentos que envolviam Jesus.
“Os que foram crucificados com ele”, “alguns ali
presentes”, “eles”: são os figurantes que preenchem a cena.
Este estilo coletivo é próprio
dos antigos escreverem, mesmo porque, na Antiguidade, os personagens coletivos eram
muito comuns; diferente das narrativas modernas, cujo centro das atenções se voltou para
os indivíduos.
Os discípulos, que tem uma ação contundente na narrativa, são tratados
como personagem coletivo, mas não por isso representaram um papel exclusivamente
figurativo, pois eles somam “gravidade” à trama, até mesmo com a ausência, pois a
pergunta do leitor consiste sempre: “para onde foram os discípulos?”
São uma espécie de tipologia de atitudes que variava da rejeição total à fé exemplar, também
buscamos constatar estas relações dos personagens com Jesus no relato da Paixão em
Marcos. Pretendemos fazê-lo a partir de alguns estereótipos comuns, tais como: rejeição
total, intolerância, apatia, empatia, simpatia, seguimento-adesão e fé exemplar:
Os estereótipos elencados podem ser identificados mais a partir das ações dos
personagens do que por suas palavras; ações que evidenciam os personagens em relação a
Jesus e sua condenação. Alguns personagens os que assumem os papéis estereotipados da
rejeição total e ou da intolerância. Podem ser elencados aqui diversos personagens: Judas
(14,10), os sacerdotes chefes (sumos sacerdotes), os escribas e os anciãos (14,1.53); Pilatos
(15,15) e os soldados (15,16). Outros são empáticos a Jesus e o acompanham com a
simpatia de fé, como é o caso da mulher que o unge em Betânia, (14,3-9); alguns
discípulos, que mesmo não entendendo tudo acerca do que se passa com Jesus estão ao
lado dele (14,12-16); o jovem que o seguia vestido com um lençol (14,51); Simão de
Cirene (15,21); o centurião, que exclama sua filiação divina (15,39); José de Arimateia,
que vai a Pilatos pedir o corpo de Jesus a fim de poder sepultá-lo (Mc 15,43); e outros que
o seguem, como exemplo de adesão discipular, tais como as mulheres, que aparecem em
três cenas da narrativa da Paixão (Mc 15,40. 47; 16,1).
Os discípulos, por sua vez, ao parecer demonstrar que não compreendem tudo
o que acontece com Jesus, o Mestre, fazem parte de um estereótipo que pode ser chamado
seguimento por empatia. Eles executam algumas ordens estabelecidas por Jesus (14,13),
mas nem sempre chegam à perfeição da obediência (14,37). Entre os discípulos encontramse
Pedro (14,30), que o nega, e Judas (14,10), que o trai por dinheiro (14,11). Este último,
Judas Iscariotes, pode ser enquadrado no estereótipo designado rejeição-apatia, pois se
trata de um discípulo que não compreende a missão e a opção de Jesus, sua frustração em
relação ao modelo de messianidade assumido por Jesus parece levá-lo à traição.
Há, contudo, entre os seguidores de Jesus, aquelas que se destacam por um
seguimento-adesão: as mulheres que o acompanham e o servem (15,40-41); embora a
narrativa da Paixão termine com o silêncio de tais mulheres, que poderia se assemelhar a um mal-entendido por causa do medo, elas são convidadas à fé exemplar por meio do
personagem jovem, que constitui uma espécie de arauto da ressurreição de Jesus. Ele é
quem afirma às mulheres que Jesus ressuscitou (16,6): anuncia-lhes a missão de irem na
Galileia para encontrarem Pedro e os discípulos, e lhes afirmar que Jesus, o Vivente, não
jazia mais no sepulcro. Anunciar Jesus Ressuscitado é o pleno sentido do estereótipo de
fiel exemplar. “A fé na ressurreição de Jesus repousa sobre o
testemunho dos apóstolos e das santas mulheres”. Contudo, poderíamos inverter a ordem
desses personagens: ousamos colocá-las (as santas mulheres)
em primeiro plano, como primeiras apóstolas do Ressuscitado. Elas são as que anunciam
aos apóstolos, num segundo momento, o Ressuscitado.
No versículo 41, o narrador introduz ao leitor, e isso não é sem intenção,
verbos significativos para toda a narrativa marcana. Tais verbos
podem ser traduzidos por “seguiam” e “serviam”. O narrador afirma que aquelas mulheres
seguiam e serviam Jesus, na Galileia, desde o início de seu ministério. Isso alude à
veracidade de seu discipulado, fazendo pensar que elas não estivessem em Jerusalém
apenas por ocasião da Páscoa, como muitos turistas, mas que tivessem acompanhado Jesus
em sua caminhada, com os Doze e muitos outros anônimos. O narrador ainda diz que
muitas outras (mulheres) estavam lá e que haviam subido com Jesus até Jerusalém. Neste
versículo aparece também o verbo que se refere a “subir”, “ir” a algum lugar
na companhia de alguém. Quando se refere a ir à cidade de Jerusalém, o verbo quase
sempre é “subir”. Este verbo está relacionado, indubitavelmente, com o verbo seguir.
Os sacerdotes chefes, escribas e anciãos são citados aproximadamente sete
vezes ao longo do texto de Mc 14,1–16,8.
O sumo sacerdote, ou sacerdote chefe,
representa o pior dos estereótipos em relação a Jesus, ou seja, o da completa rejeição ou
rejeição plena.
Os sacerdotes chefes, ou sumos sacerdotes, escribas e anciãos, fazem
referência ao poder religioso, àqueles que trabalham com as Escrituras, e ao civil: uma
espécie de triunvirato maldoso que se une para destruir Jesus. Sua rejeição tende à intolerância religiosa, uma vez que Jesus anunciava uma mensagem que provinha do Reino
e o tinha como centro da vida dos homens. O Reino, a Soberania e a Era de Deus eram a
verdade que Jesus pregava.
Também nesse rol entram os soldados, que serviam para a manutenção da paz e
da segurança do representante do Império Romano. Os soldados são intolerantes a Jesus,
tratando-o com desprezo e crueldade. Eles o humilham, o insultam e o maltratam com
escárnio.
A cristologia, em Marcos, pode ser entendida como substrato ou
consequência da descrição de Jesus realizada pelo narrador.
O protagonista do evangelho de Marcos, Jesus de Nazaré, pode ser considerado
um personagem redondo, o que para a análise narrativa representa um personagem bem
estruturado e possuidor de diferentes nuances que ficam evidentes no conjunto da leitura
do evangelho marcano.
Jesus se apresenta a nós como um personagem completo, pois
contém traços marcantes, dentre os quais, o mistério, que o leva a atuar de maneira nova e
surpreendente, agindo como Deus.
Pode-se dizer que:
O que Jesus “diz” revela sua compreensão de si mesmo como agente
de Deus e seus propósitos. Tanto o que Jesus faz como o que ele diz
expressam seus valores e mostram sua integridade vivendo de acordo
com esses valores. As reações ante Jesus incluem medo, ofensa,
assombro, lealdade aguerrida e firme oposição.
Tais informações nos possibilita ver a integralidade do personagem Jesus.
Os leitores se encantam com o Jesus narrado por Marcos. Ele é autônomo em
todo o sentido da palavra, sendo caracterizado, pelo narrador, como Filho de Deus, profeta
ou Messias.
Ele decide o destino de sua vida, realiza em si a vontade de Deus, o Pai,que o enviou.
Jesus é descrito Filho de Deus do começo ao fim do evangelho (Mc 1,1-
15,39).
Na narrativa, ele se posiciona com atitudes decisivas: ir a Jerusalém, à cidade de
Betânia; voltar para Jerusalém; comer a Páscoa com seus discípulos; orar ao Pai no
silêncio; deixar-se ser conduzido pelos guardas até o Sinédrio e, ao mesmo tempo, à cruz.
Por fim, doar-se às mãos de Deus. Ele “vai à morte sem resistência alguma”
A caracterização do personagem Jesus no evangelho de Marcos se revela em
consonância como o servo sofredor na profecia de Isaías.
Jesus é o “sofredor inocente, Filho obediente, o total cumprimento das
Escrituras.
Mc 14,1-42 revela um Jesus obediente e sofredor.
Em Mc
14,43–15,15, é possível testificar o desenvolvimento da imagem de Jesus, mestre e profeta,
vindo da parte de Deus.
A cena da prisão de Jesus fornece um link crucial entre as imagens
proféticas de Jesus e a Cristologia da Paixão.
A secção de Mc 15,16–16,8 fornece
elementos conclusivos sobre a caracterização de Jesus: “o sofredor inocente cede
elementos para a imagem profética da narrativa da Paixão”.
Desde o
começo do evangelho se estabelece um elo entre o ministério e a proclamação de Jesus,
além da sua morte.
A cena da morte de Jesus (Mc 15,20c-37) traz a Cristologia da Paixão para a
realidade: ela cumpre as imagens de Jesus servo sofredor e profeta condenado.
Nesse
sentido, é possível compreender o sentido da invocação do Salmo 22 para descrever Jesus como o sofredor inocente.
Nessa perspectiva, pode-se conceber que algumas palavras e ações de Jesus estivessem
relacionadas às Escrituras que o precederam. A vida de Jesus, correspondendo em
realidade aos textos do Antigo Testamento, “especialmente porque tanto Jesus como seus
oponentes eram pessoas versadas nas Escrituras, ou foram tocados, de um modo
influenciado, pelas Escrituras, ainda que os atos não tivessem sido criados por elas” .
Assim, parece improvável que os cristãos tivessem atribuído a Jesus crucificado as
palavras do Sl 22,1 (“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”) se ele, de fato, não
as tivesse pronunciado naquele momento decisivo humano abandonado durante uma noite de solidão.
A não resposta de Deus é ressentida
por aquele que o invoca. A ausência do evocado é sentida.
Há, neste sentido, um contexto
de identidade profunda entre “a noite, a morte e o silêncio”.
No caso de Jesus, mesmo em
plena luz do dia, sua morte pode ser apontada como o maior distanciamento entre ele, o
Filho, e seu Pai, Deus.
Em Jesus, contudo, de modo fiducial, cumprem-se os desígnios de Deus.
Ele
tem como destino a cruz e, mesmo sendo humilhado, não ergue sua voz para replicar os
insultos, pois confia em Deus. Contudo, tal lamentação, o Sl 22, pode ser considerada um
último grito de agonia, tanto por parte de Deus como dos homens. “Para os profetas (Isaías,
Jeremias, Ezequiel), se o Homem sofre, Deus sofre também , por causa de
Seu abandono por parte do Homem”.
Portanto, o Sl 22, na boca de Jesus, pode ser
compreendido como uma prece, uma oração a Deus, a fim de que seu Reino advenha, de
modo especial, para todos os que sofrem.
É, portanto, à luz deste versículo que se pode
compreender a confissão do centurião, que, vendo como Jesus morria, exclamou:
“Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus”. A voz do centurião pode ser
considerada, para o evangelho de Marcos, uma possível resposta de Deus na
complementação do Sl 22.
Deste modo, Deus não se ausenta totalmente na Paixão de seu
Filho, mas contempla a profundidade de sua morte.
Jesus cumpre os desígnios de Deus.
Tal afirmação pode se embasar verdades que o evangelho evidencia:
Jesus é o único ao qual Deus concedeu sua
autoridade no mundo;
Jesus tem confiança extraordinária em Deus; o ato de Jesus
servir define sua maneira de relacionar-se com Deus e com os homens.
As obras de
Jesus, em Marcos, expressam a compaixão e o bem-estar da soberania de Deus aos que são
“como ovelhas sem pastor”.
Os atos de Jesus, de servir aos irmãos, curar suas
enfermidades, multiplicar os pães para os famintos, exorcizar os possuídos e, por fim, se doar resolutamente na cruz para remissão de muitos, evidenciam que de seu itinerário
teológico está mesmo inspirado pela imagem do servo do Senhor.
Também faz-se indispensável analisar o personagem Jesus no enfrentamento
com a morte, em sua execução e, por fim, no significado de sua crucificação.
Em relação à
morte, Jesus sabe que ela virá inevitavelmente, podendo tratar-se de uma consequência
para sua vida: pregação e ação messiânica libertadora.
Jesus também provocou a
hostilidade das autoridades, entrando em Jerusalém com uma multidão de seguidores e
atacando o templo (cf. Mc 13,2).
“Jesus tem medo da crucificação e sua recomendação aos
discípulos no Getsemani sugere que ele conhece a debilidade de sua própria carne frente à
morte” (Mc 14,32-33).
O narrador marcano mostra Jesus angustiado e assustado “em tristeza mortal” (Mc 14,34), mas reconhece que ele se submete à vontade de Deus,
desejando ser fiel (Mc 14,36). Perto de sua morte, Jesus lança um forte grito e expira (Mc
15, 34.37). Se “não há volta, não há libertação para esta execução. Deus não resgata Jesus
de sua morte”
65. Compreendemos que o protagonista de Marcos enfrenta a morte
solitariamente: o último grito de Jesus confirma seu sentimento de abandono por parte de
Deus; morre só e um desconhecido o sepulta. Na crucificação, Jesus se revela resiliente e
segue, até o último suspiro, realizando a vontade de Deus, que o acolhe em sua morte. Com
isso, afirmamos que “a execução foi consequência trágica da fidelidade de Jesus à
soberania de Deus”, ao reinado de Deus e sua vontade, levando à escuridão que abate o
cenário da morte, indicando o aniquilamento, o fim de tudo.
O véu do templo se rasga em
dois (versículo 38), simbolizando a sua ruptura: o fim de seu sentido.
O templo deixa de
significar lugar da relação com Deus. É agora, na morte e ressurreição de Jesus, que se
estabelece o novo lugar de encontro com Deus.
Jesus é ressuscitado e a soberania de Deus chega a seu poder e glória. Marcos
enfatiza a morte e ressurreição, pois o significado de tais eventos dão sentido a todo o
Evangelho.
Nada é maior que a morte e a ressurreição de Jesus, para o segundo
evangelho.
A morte, mesmo retratada como dolorosa, pois é experimentada na cruz, não
é descrita por Marcos como um sacrifício unicamente expiatório, ou seja, pelos pecados,
mas trata-se da consequência aparente da vida de Jesus, tudo o que é narrado acerca da
práxis de Jesus no evangelho marcano tem como culminação a morte e ressurreição.
Marcos intenta estabelecer causas para a morte de Jesus: primeiro, as
ações humanas, quando as autoridades levam a cabo a pena de morte contra Jesus; em
segundo, a vontade de Deus.
Claramente, em Marcos, Jesus “vai à morte crendo que é a
vontade de Deus
Podemos, aqui, compreender
que Jesus “vê sua vida completa, incluindo sua execução, como um meio pelo qual as
pessoas são resgatadas ou libertas para uma vida de serviço à soberania de Deus”7. Nesse
sentido, a soberania corresponde à categoria bíblico-teológica do Reino de Deus; é uma categoria indispensável à teologia dos evangelhos, pois corresponde ao
horizonte da pregação de João Batista e de Jesus e, certamente, de todos aqueles que
esperavam tal reino ( Mc 15,43)
Jesus é apresentado em Mc 15,39 como “Filho de Deus”, na boca de um
gentio, um centurião romano. Ele contempla Jesus em sua morte e exclama: “Este homem
era Filho de Deus”.
O narrador conduz o leitor a perceber que Jesus, mesmo em sua
agonia, é realmente o rei divino. Então, o centurião põe em manifesto o personagem Jesus,
atraindo a atenção do leitor.
Tal fato parece ser ironia marcana, pois é justamente um
romano quem percebe a filiação divina de Jesus na cruz. O centurião é o último ser
humano a declarar a identidade crível de Jesus.
Mesmo ao som dos insultos dos transeuntes, o narrador quer afirmar que o
trono da cruz é o lugar máximo da revelação do Filho de Deus: sua morte é reveladora.
Assim, se a multidão se mostra como testemunha irônica, podemos ver Jesus como a
verdadeira testemunha da soberania de Deus.. Ele é o Filho de Deus por excelência.
Em relação à ressurreição, o personagem Jesus, em Marcos, se apresenta
seguro de que esta corresponda à realidade constante e próxima, sobretudo porque o
evangelho marcano está “embebido” de ressurreição.O Evangelho de Marcos é um texto
‘saturado’ (repleto) de ressurreição; nos anúncios da paixão e ressurreição (Mc 8.9.10), no
relato da Transfiguração e de outros relatos que ainda dão à narrativa uma tonalidade
pascal”
O personagem Jesus, em Marcos, está caracterizado em suas parábolas e em
seu modo de pensar e de ser, segundo a representação do testemunho que os discípulos fazem de sua messianidade. Contudo, enquanto os discípulos estavam com o Jesus
terrestre, nem sempre o compreendiam com perfeição. O testemunho dos discípulos e dos
apóstolos é pós-pascal e assinalado por uma espécie de modelo sobre o Jesus que é
narrado.
Ao observarmos a caracterização do personagem Jesus, na trama da Paixão em
Mc 14,1–16,8 leva a demonstrar que Mc 14–
16 proporciona um multifacetado retrato de Jesus, construído, clarificado e ampliado por
meio de sua relação recíproca com a narrativa maior”.
Esta “narrativa maior” , por fim, corresponde ao texto que antecipa o relato da Paixão, Mc 1 – 13.
Desse modo, percebe-se que a caracterização de Jesus, para o narrador de Marcos, constitui
algo indispensável para levar o leitor a atentar-se ao horizonte teológico da vida de Jesus.
Ele é o Filho de Deus, o Filho do homem, o Messias, aquele que entregará, na cruz, sua
vida e ressuscitará da morte, toda descrição da vida de Jesus, de modo geral, é relativa a
Deus, à sua soberania, ao Reinado de Deus.
Os discípulos podem ser caracterizados pelo conflito “entre viver segundo os
termos de Deus e segundo os termos humanos”. Os discípulos se esforçam por viver
segundo a soberania de Deus, desejando de todo coração seguir o seu filho, sendo capazes
de assumir os riscos dessa escolha. Ao mesmo tempo, vivem segundo a perspectiva
humana, que se preocupa apenas com a própria seguridade, status e poder.
Diante disso, pode-se concluir que os discípulos, em Marcos, retrocedem na fé.
Eles começam, no relato, como personagens confiáveis, mas terminam “sendo exemplos de
como não se deve seguir a Jesus”.
No relato da Paixão, dão provas antitéticas de
seguimento: seguem Jesus até Jerusalém e Betânia; um, dentre eles, entrega Jesus por
dinheiro, logo após a ceia; Pedro não consegue, juntamente com os discípulos, vigiar
enquanto Jesus ora, no horto, pois se põe a dormir. Posteriormente, Pedro o nega por três
vezes. De modo geral, todos abandonam Jesus, na morte; só as mulheres que o seguiam e o
serviam, desde a Galileia, observam de longe a cena da morte, do
sepultamento e da ressurreição.
Em outros termos, pode-se dizer que a incompreensão dos discípulos não é a
mesma dos leitores de Marcos.
Uma coisa foi a morte brutal de Jesus, entregue nas mãos
dos romanos, como se tinha predito (Mc 8,31); outra coisa foi a experiência de sua morte,
como ausência de Deus (Mc 15,34)88.
Desse modo, o acontecimento ultrapassa a
predição.
Jesus ensina aos discípulos que seu discipulado implica, inclusive, em
perseguição.
O ato de segui-lo a Jerusalém fará com que os discípulos repensem o sentido
da missão.
A ausência dos discípulos no relato da Paixão, sobretudo, em seu clímax e
desfecho, leva-nos a pensar que, para seguir Jesus, é necessário o movimento de
relativização da própria vida, que deve ser colocada a serviço dos irmãos, assim como ele o
fez, na cruz do Calvário.
No entanto, desde o início do relato marcano, Jesus foi ensinando
o servir e o desapego a sua própria vida.
Quando ele curava as pessoas, as libertava dos
espíritos impuros e as ensinava, ele demonstrava que sua vida era instrumento, meio de
salvação e que tinha vindo ao mundo para servir e não para ser servido (cf. Mc 10,45).Embora os discípulos tenham abandonado Jesus na Paixão, “sua apostasia não
foi definitiva”. Basta averiguar o final canônico de Marcos (16,7-8), no qual o jovem diz
às mulheres: “Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vai adiante de vós para a Galileia. Lá o verão, como ele vos disse”. Com tais palavras, o narrador resgata no leitor de
Marcos a esperança do seguimento e do serviço dos discípulos de Jesus. Eles deveriam ser
avisados, instruídos de que Jesus ressuscitou e que a morte não havia sido a última palavra
a respeito dele.
No que se refere ao relato da Paixão, segundo Marcos, os pontos de vista estão
relacionados ao personagem protagonista da Paixão: Jesus é um homem de fé que entrega
sua própria vida no Calvário, assumindo, plenamente, a vontade de Deus.
Com isso, ele se
identifica com a soberania de Deus, constituindo-se aquele que vem para servir, e não para
ser servido. Perdendo sua vida na cruz, Jesus ganha de Deus a fiabilidade total – sua
filiação é plena e, por isso, Jesus é ressuscitado dos mortos.
Da parte dos homens, as
autoridades judaicas se tornam veementemente hostis a Jesus; resta-lhes a identificação
com a falta de fé, o medo em relação ao que Jesus poderia tratar frente à estabilidade da
religião judaica e o modo como ele, Jesus, viveu a religião, libertando as pessoas de toda
opressão e desestabilizando a presunção daqueles que detinham o exercício do poder.
Estas questões podem ser observadas em dois momentos da narrativa da Paixão
de Jesus.
Primeiro, em Mc 14,61-63, em que Jesus é questionado pelo sumo sacerdote
sobre sua identidade: “Tu és o Cristo, o Filho do Bendito?”; pergunta à qual Jesus
responde: “Sou eu, e vereis o Filho do Homem assentado à direita do poder e vindo com as
nuvens do céu”. Depois dessa resposta acintosa, o sumo sacerdote rasga suas vestes em
gesto reprovador das palavras de Jesus, que pareceu ferir, com elas, sua fé messiânica, que
não via nele o Filho de Deus. A resposta de Jesus parece desestabilizar a compreensão de
fé do sumo sacerdote, que representava, de forma ordinária, a fé judaica.
Em seguida, em
Mc 15,2-5, passagem na qual Pilatos questiona Jesus se ele era mesmo o rei dos judeus,
recebendo a resposta: “Tu o dizes”. Os sacerdotes chefes o acusaram de muitas coisas;
Pilatos redarguiu, dizendo: “Não respondes nada? Olha de quantas coisas te acusam?!”
Jesus, contudo, nada respondeu, fazendo Pilatos se admirar (Mc 15,5). A admiração de
Pilatos e o silêncio de Jesus são ironias do narrador de Marcos: a autoridade hegemônica
de Pilatos é destituída e relativizada pelo silêncio ensurdecedor de Jesus. A presunção do
Procurador Romano, de saber tudo, pela autoridade que exercia, cai por terra mediante o silêncio de Jesus, que revela o mistério de Deus em sua vida. Assim, Jesus responde
silenciosamente, pois seu poder primacial vinha do Pai, de Deus mesmo.
No ponto de vista teológico, o termo “Filho de Deus” se sobressai em toda a
narrativa de Marcos e na culminação do relato da Paixão (Mc 15,39). Na abertura do relato
marcano, em Mc 1,1 o título “Filho de Deus” já constitui uma informação fornecida ao
leitor. Contudo, esta informação “permanece escondida para os personagens que aparecem
progressivamente na narração” (os discípulos, a família de Jesus, os adversários). Só os
leitores são colocados a par da opinião de Marcos sobre a filiação divina de Jesus.
Aparentemente, apenas os demônios são capazes de revelar quem é Jesus (1,24-25; 3,12).
É curioso perceber que os demônios têm uma presciência em relação a Jesus, conforme
descrito em Mc 1,24, quando o espírito impuro diz: “Sei quem tu és: o Santo de Deus”. Já
em Mc 3,12, se diz que os espíritos impuros caíram aos pés de Jesus e gritaram: “Tu és o
Filho de Deus”. Jesus, porém, ordenava-lhes silêncio. Em Mc 5,6, o espírito impuro, ao ver
Jesus de longe, correu e ajoelhou-se diante dele e clamou em alta voz: “Que queres de
mim, Jesus, Filho do Deus altíssimo?”
Em Mc 1,11, semelhantemente a Mc 9,7, tanto o batismo como a
transfiguração trata-se de uma realidade externa a Jesus, não-humana, mas teofânica, na
qual Jesus é revelado Filho amado
No caso de Marcos, em alguns momentos o leitor percebe que Jesus não
desejava ser reconhecido como Filho de Deus durante sua vida terrena,na qual Jesus produz grandes esforços para reorientar a honra ou o respeito para Deus,
retirando de si a atenção dos personagens e remetendo-a àquele que o enviou.
O reinado de Deus, entendido como soberania de Deus, aparece no relato da
Paixão de maneira contundente: Jesus faz a vontade de Deus agindo conforme a soberania
daquele que o enviou; ele celebra com seus discípulos a partilha do pão, seu próprio corpo
ofertado como alimento; se entrega às mãos dos perversos com a anuência e sob a vontade de Deus; seu caminho para o Calvário passa pelo projeto do Pai, que envia seu filho para
cumprir sua vontade.
Jesus leva essa vontade de Deus às últimas consequências,
entregando-se pacificamente à morte na cruz.
A soberania de Deus também se mostra na
ressurreição de Jesus, anunciada às mulheres que foram ao sepulcro – por esse gesto,
manifesta-se a certeza de que Jesus foi ressuscitado da morte e se faz presente na Galileia,
primeiro lugar teológico da manifestação genuína da soberania de Deus por meio dos
milagres e ensinos que lá protagonizou. A expressão “lá o vereis” indica a certeza da glória
de Jesus que será manifestada na Galileia: sua ressurreição constitui a plenipotência de
Deus sobre seu Ungido – o Messias. Para o leitor crente,
este retorno na Galileia é sinônimo de um trabalho de releitura, de reinterpretação da
existência de Jesus à luz do evento pascal: para ele, não há outro acesso ao Jesus da
história que o Cristo da fé”. Mas diríamos também que a Galileia é também lugar de
recomeço, sobretudo por causa da alegria que todo recomeço possibilita. Desse modo,
voltar na Galileia para ver o ressuscitado corresponde à possibilidade de segui-lo com mais
fidelidade e entusiasmo.
Outros pontos de vista podem ser destacados na leitura do relato da Paixão
segundo Marcos (14,1 – 16,8): a unção em Betânia, por parte da mulher, cuja atitude seria
sempre lembrada (ou “será contada” ; a compreensão, ou a impossível
compreensão da vontade humana versus a vontade de Deus, expressa de forma excepcional
pela maquinação maligna das autoridades que, desde muito cedo, no evangelho de Marcos,
procuram aniquilar Jesus, conduzindo-o à morte; em seguida, a conspiração de traição,
fruto da incompreensão do traidor em relação a seu mestre Jesus; o ponto de vista
teológico e a perspectiva da ceia de Jesus, na instituição de um gesto profético de entrega
antecipada da vida, significada no pão e no vinho e compreendida de forma exemplar no
altar da cruz; a incompreensão dos discípulos, seguida do abandono e da negação por parte de Pedro; a prisão de Jesus como negação do exercício de libertação de seus compatriotas;
a confabulação perversa para condenar Jesus à morte; a execução de Jesus como máxima
expressão da apatia e desprezo para com ele; a exclamação de fé por parte do centurião,
que proclama Jesus o Filho de Deus; o seguimento e o serviço das mulheres até o fim da
vida de Jesus, ao pé da cruz, e o discipulado a partir do encantamento de uma figura quase
final do evangelho, que é José de Arimateia, aquele que sepulta Jesus; por fim, a
proclamação da ressurreição de Jesus e o encontro com ele na Galileia, tendo como final
abrupto o medo e o silêncio das mulheres, designadas pela figura epifânica para
anunciarem o Ressuscitado.
Os pontos de vista do narrador a respeito da vida de Jesus, desde sua unção em
Betânia até ao fim “enigmático” da trama, seguido do silêncio e do medo das mulheres
seguidoras, formam o conjunto teológico de Marcos, bem como o escopo, a finalidade pela
qual ele narrou seu evangelho.
Assim, consideramos que o narrador de Marcos dá um
sentido teológico narrativo ao sentido cronológico dos últimos momentos da vida de Jesus,
bem como um significado à sua morte e à proclamação de sua ressurreição, lida como
verdade fundamental do evangelho.
Evidentemente, sem estes aspectos que correspondem à narrativa da Paixão de
Jesus em Marcos (Mc 14,1 – 16,8), não poderia ser anunciado o evangelho como a Boa
Nova do Jesus Ressuscitado. A narrativa da Paixão, em seu conjunto polifônico e
harmonioso, dá sentido à vida de Jesus e também ao fato de sua ressurreição: o fundamento
do evangelho narrado é, necessariamente, a vida de Jesus: sua morte, mas principalmente o
desfecho de tudo, a ressurreição.
CONCLUSÃO
O final aberto do evangelho, como ponto de vista inusitado da teologia de
Marcos, pode ser considerado uma continuidade do segredo acerca do personagem
Jesus, já que toda verdade comportada no evangelho não sana a curiosidade da fé
humana a respeito de quem é Jesus. O mestre da Galileia, Jesus Nazareno, pode ser
considerado em sentido mais amplo do que aquele que as notícias dão a conhecer: há uma
reserva de sentido quanto a ele e à sua vida. O fim do evangelho, permeado por medo e
pavor, seguido de silêncio, pode, notadamente, significar que o mistério do Messias Jesus
vai sendo desvelado na vivência do anúncio contínuo da boa notícia a seu respeito; boa
notícia que nos diz que ele está vivo, ressuscitado, e que espera para ser contemplado por
seus discípulos na Galileia. O que poderia ser entendido especificamente como tragédia no sentido clássico do termo, se transforma em possibilidade de catarse, de recomeço,
como lugar de novas descobertas.
O final de
Marcos pode ser entendido a partir de seu começo, Mc 1,1 “Início do evangelho de Jesus
Cristo Filho de Deus.
Consideramos, em parte, esta
afirmação, sobretudo, no que concerne ao fato de que o autor (Marcos), já no início de sua
obra, diz que ela não é tudo, mas só o início . “Muitas coisas aconteceram e ainda
vão acontecer. O resto vocês devem buscar na caminhada da Igreja...”. Por outra parte,
consideramos que terminar em suspense seria um modo de passar adiante a necessidade de
contar um final coerente para o evangelho.
Desse modo, terminar uma narrativa com uma resposta em branco , em
suspense (16,8) constitui, particularmente, um recurso literário muito estimulante para o
leitor. A singularidade da conclusão de Marcos estimula a interpretação
e não a reconstrução conjetural de suposições”. Isso significa que o leitor é provocado a
tentar dizer o não-dito.
Marcos não supõe uma resposta final para a intriga (Mc 15,40-
16,8); antes, ele deixa a possibilidade de um final ao leitor em sua liberdade interpretativa.
O silêncio marcano indica o convite dirigido ao leitor para que ele termine a narrativa
buscando um desfecho em consonância com o relato narrado desde o começo.
Na busca de definir o itinerário teológico do narrador e seu ponto de vista final,
podemos afirmar que Marcos concedeu forma dramática ao servo sofredor do Senhor,
perceptível na obra do trito-Isaías, sobremaneira Is 52,13-53,12.
A cristologia de Marcos,
o Jesus Cristo encontrado no entretecer da narrativa, constitui produto refinado da
percepção e leitura do servo sofredor que se entrega piamente à morte,
sofrendo e morrendo por muitos (Mc 10,45). Essa consideração se baseia na hipótese de
que o narrador de Marcos tenha se inspirado no horizonte teológico de Isaías, sobretudo
nos cânticos do servo de Javé, que sofre resolutamente. Assim, na perspectiva de Mc
15,39, o centurião, que exclama a morte de Jesus, representaria os povos vizinhos, que
testemunham o acontecido com o servo que sofre, que obtém o triunfo de Deus, pois
cumpre com diligência o que o Senhor lhe ordenou.
A mensagem sobre o sofrimento de Jesus, no evangelho de Marcos, assim
como o sofrimento do servo de YHWH, em Isaías, parece maior e significantemente mais
importante que o próprio triunfo de ambos. Contudo, a mensagem positiva e de esperança
constitui a essência de ambos os textos. Jesus é visto como servo sofredor e obediente a
Deus na ótica de Marcos; é o servo que se entrega, desde o princípio da narrativa da
Paixão, às mãos dos malvados e, seguramente, às mãos salvíficas de Deus, o Pai. A
exclamação fiducial “Abbá (ó Pai)! Todas as coisas são possíveis para ti: afasta de mim
este cálice, porém, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36), corresponde
ao desejo de cumprir tal vontade e não se furtar à sua própria. O filho Jesus se entrega nas
mãos do Pai cumprindo os desígnios da soberania de Deus, e não a sua própria glória.
O
ponto de vista final de Marcos ressalta Jesus, Filho de Deus, que se faz servo para a
salvação de muitos, entregando a própria vida aos discípulos (Mc 14,22), oferecendo-lhes
o cálice da aliança derramado por muitos (Mc 14,24) e estando prestes a beber o cálice do
martírio (Mc 14,36). A morte de Jesus, então, se faz motivo de dispersão dos discípulos;
sua profecia diz: “Ferirei o pastor e as ovelhas serão dispersas” (Mc 14,27).
O leitor de Marcos é convocado, ainda hoje, a dizer quem é Jesus
Ressuscitado: este pode ser considerado o ponto de vista fundamental. O leitor e a leitora
do evangelho são chamados a se converterem em seus intérpretes; são, também,
interpelados a conhecer e se encontrar com Jesus. O evangelho, portanto, lança um convite
para o encontro e comunhão com o Filho de Deus, Jesus Cristo, que se entrega na cruz para
nossa salvação. Daí se pode compreender que a vida de Jesus é de fato uma “epifania
secreta, e somente a proclamação da Cruz e da ressurreição revelam, devida e justamente,
Jesus no Evangelho”