sexta-feira, 30 de março de 2018

NO CREPÚSCULO DO SEXTO DIA

Pode Deus ter criado alguma coisa após o sexto dia?

O Gênesis não acabou no sexto dia,o próprio Jesus disse que "o Pai trabalhava até então"(João 5:16)

Independente de termos um Deus dinâmico,que é algo real,encontramos 10 possibilidades de criações milagrosas de Deus.

Para satisfazer sua curiosidade:

1) a abertura no chão que engoliu Korach e seus rebeldes
2) o poço de Miriam
3) a boca da mula falante de Balaão
4) o arco-íris de Noé
5) o maná
6) o cajado de Moisés
7) o shamir
8) o alfabeto hebreu (em outras fontes, o alefbeit foi criado dois dias antes do primeiro dia da Criação)
9) as duas tábuas, onde foram gravados os Dez Mandamentos
10) a inscrição dos Mandamentos nas tábuas

                                                     O POÇO DE MIRIAM

Miriam fazia parte de um triunvirato familiar de líderes,sendo uma grande contribuidora para a libertação do povo de Israel do Egito.
Ela é mencionada como aquela que profetizou o nascimento de Moisés e que ele seria o libertador que redimiria Israel dos egípcios, uma tarefa em que ela também o ajudaria. 
Além disso, Miriam atuou como um líder durante as andanças no deserto; Pelo seu mérito os israelitas foram acompanhados em suas viagens pelo poço que leva seu nome: “Beer  Miriam”.

Miriam é mencionada primeiramente pelo nome na canção no mar (Êxodo 15: 20-21)
A descrição em Num. 20 da morte de Miriam é imediatamente seguida pelo episódio das Águas de Meribá: “Miriam morreu lá .A comunidade estava sem água” (vv.1-2). 
É interessante  aprendem  essa justaposição que a morte de Miriam resultou na escassez de água.

No quadragésimo ano da saída, no mês de Nissan, no deserto em Cadesh, Míriam estava com 125 anos: “... e morreu ali Míriam, e foi sepultada ali” (Números 20,1). Uma morte sem dor concedida por D´us pelos seus grandes méritos. Logo após sua morte a Torá diz:


“... e a congregação já não tinha mais água” (Números 20:2). Os hebreus, sedentos, voltam a se queixar.

Em um mural na sinagoga ”Dura Europus” (que foi destruída no século III dC), no qual vemos o poço de Miriam, com correntes de água que emitem para cada uma das tendas das doze tribos de Israel.Descrito como um poço maravilhoso que fluiu de si mesmo, como uma rocha cheia de buracos.

Marcada pela sina da água,Míriam é muitas vezes associada à água, como por exemplo, no rio Nilo quando está olhando o pequeno Moisés; ou quando entoa o hino de louvor após a travessia do Mar Vermelho. Mesmo seu nome nos sugere esta associação com o mariam, em hebraico.

Então, Moisés  reuniu e  ajuntou o povo. E eles ficaram esperando uma providência de Moisés, com aquela famosa vara, que ferira o Nilo, abrira o Mar Vermelho, fizera tantos outros sinais e prodígios, no curso daquele período. Mas agora a vara está quietinha, ao lado de Moisés; e ele, calado, olhando para o povo. E a voz de Deus no coração de Moisés apenas diz o seguinte: Reúne o povo e à frente dele põe os príncipes das tribos de Israel – todos os príncipes, todos os líderes – e manda que eles cantem olhando para o chão; que eles façam uma poesia à terra, que eles façam uma poesia à aridez, que eles façam uma poesia à secura; que eles componham um cântico à poeira, que eles façam brotar de seus corações um manancial poético e de louvor, com rima e com gratidão; e que eles cantem aos céus olhando para o chão e que entoem um cântico que diga: “Brota, ó poço! Entoai-lhe cânticos! Brota, ó poço! Entoai-lhe cânticos!”

E Moisés quieto, segurando a sua vara, assistindo aquela multidão, com os príncipes em círculo, bem adiante do nada, da poeira do deserto, de coisa alguma, apenas cantando aos céus e fazendo poesia para o chão, dizendo: “Brota, ó poço! Entoai-lhe cânticos! Brota, ó poço! Entoai-lhe cânticos!”.

Enquanto eles assim faziam, as águas começaram a brotar. Daí o lugar se chamar Beer, que significa “poço”.

O nome do poço passou a ser Poço. Não é de Mataná. É Poço. Porque o que aconteceu ali foi um poço; que brotou do nada; evocado pelo louvor, pela poesia, pelo cântico, pela gratidão. E essa era uma das últimas lições de Deus a Moisés e de Moisés ao povo, antes que Moisés mesmo se retirasse. Porque essa é uma das últimas lições da consciência humana no deserto desta existência.

                                                   O SHAMIR


Templo de Salomão,foi construído na antiga Jerusalém, no Monte Zion, durante o reinado do Rei Salomão , por volta de 832 antes da era cristã, tendo sido destruído por Nabucodonosor em 587 a.c. 

Contudo, não há evidências arqueológicas concretas da existência deste templo. 

O processo de sua construção é tão misterioso que envolve  até mesmo a lesmas.


Tratando-se de um templo onde a própria Presença Divina  habitaria, uma série de cuidados foi tomada na sua construção. 
O que nos interessa agora: nenhuma ferramenta que pudesse ser usada como arma deveria ser utilizada durante a construção. O  templo “foi construído com pedras preparadas na pedreira e não houve martelo ou machado ou qualquer utensílio de ferro se ouviu na casa enquanto o edifício se edificava”.
 “A frase ‘se edificava’ implica auto-edificação, significando que as mãos dos artesãos não tocaram nas pedras’”. 
Se nenhuma ferramenta que pudesse causar derramamento de sangue foi utilizada, então como conseguiram cortar os pesados blocos de pedra que foram usados para erigir o templo?
O Shamir é uma  espécie de verme que, com sua secreção, era capaz de cortar não apenas rocha, mas também metal ou até o diamante. 
O shamir seria um pouco menor que um grão de cevada e seria uma das dez criações milagrosas de Deus no crepúsculo do sexto dia.
Teria sido utilizado primeiramente por Moisés, para gravar em doze diferentes tipos de pedras semi-preciosas os nomes das tribos de Israel, que seriam usadas na vestimenta do sumo-sacerdote. Moisés pegava uma pedra lapidada, escrevia o nome da tribo com tinta e colocava o shamir,esse bicho bizarro  gravava o nome na pedra conforme Moisés queria,derramando uma secreção,uma espécie de mineral ou uma espécie de gelatina,que ele cortava pedra, madeira ou metal.
As duas pedras preciosas das alças do efôd e as doze pedras preciosas do chôshen deviam ser cortadas de uma certo tamanho. Porém Deus proibiu que se usasse uma faca ou qualquer outro instrumento para cortar essas pedras.
Como então, cortar as pedras? 
Deus ordenou que se pusessem doze pedras preciosas engastadas sobre o material tecido do peitoral. Sobre cada pedra estava escrito o nome de uma das doze tribos.
Além desses nomes as pedras possuíam também as seguintes palavras na placa peitoral: "Avraham, Yitschac, Yaacov, Shivtê Yeshurun." Estas palavras adicionais estavam distribuídas sobre todas as gemas, de tal maneira que cada pedra tinha o total de seis letras.
Assim, todas as letras do Alef-bet estavam incluídas na placa. Porque a placa deveria conter todas as letras possíveis? Quando o povo de Israel precisava consultar D'us sobre assuntos importantes, essas letras se iluminavam, formando sentenças, a fim de transmitir a resposta de Deus.
Para conseguir construir o templo conforme ele é descrito na Torá, o Rei Salomão precisou pedir orientação, pois uma série de problemas logísticos dificultavam a tarefa. Por exemplo, já que não podiam usar ferramentas de ferro, como cortar as pedras e a madeira?
O único jeito seguro de conter o shamir era dentro de uma caixa de chumbo, envolto em seda e com alguns grãos de cevada para se alimentar. Por conta desse relato sobre a caixa de chumbo, o shamir foi referido por Immanuel Velikovsky, um psiquiatra russo-judeu, autor de uma série de livros que reinterpretam acontecimentos da história antiga, como sendo radioativo.
Finalmente, o shamir teria perdido sua habilidade de cortar qualquer coisa quando da destruição do Templo por Nabucodonosor. Ele não teria sido destruído, apenas “desativado” de alguma forma, tornando-se uma criatura comum e inofensiva.
Em seu livro Sacred Monsters, Natan Slifkin questiona se o shamir não seria, na verdade, o verme comedor de pedras euchondrus, bastante comum no Chipre, Turquia, Síria, Jordânia e Israel. Esses mini-moluscos comem o líquen que cresce na superfície das rochas usado um órgão semelhante a uma “língua dentada” para raspá-las.
Mas a verdade é que, ainda que não seja possível provar arqueologicamente que realmente existiu um Templo de Salomão, é inegável que a série de relatos pertinentes a essa criaturinha podem, posteriormente, encontrar reflexos na cultura pop, como em Duna, que foi citado no cast.


                              A BOCA DA MULA FALANTE DE BALAÃO

Pelo que eu pude ler, certamente a Bíblia não disse que existem jumentos falantes andando por aí em qualquer lugar.
Vemos no texto que era uma jumenta , que provavelmente servia a Balaão há algum tempo, mas que foi tornada capaz de falar temporariamente através de um milagre divino. 






quinta-feira, 29 de março de 2018

JORNADA DA PAIXÃO DE CRISTO

                                           Marcos 14:1 – 16:1-8)


                                              INTRODUÇÃO


A leitura da Paixão de Jesus se constitui capaz de gerar efeitos na vida do fiel leitor ou da comunidade de fé que a lê.
A Paixão, o sofrimento de Jesus, o Filho de Deus, pode ser compreendida nos tempos de hoje em consonância à vida de inúmeros homens e mulheres, os povos crucificados, que clamam por justiça e solidariedade, a fim de serem descidos de suas escandalosas cruzes.

A Paixão de Jesus, em sua pragmática mais profunda e genuína, visa à adesão de fé em Jesus e lança os cristãos a percorrerem seu caminho, o caminho da cruz.

Em Marcos, o Ressuscitado é aquele que precede seus discípulos e toda Igreja no caminho da Galileia do mundo (Marcos 16:7), convidando-nos a refigurar nossa práxis pastoral à sua imagem.

Portanto, o evangelho marcano se destaca, desde os primórdios da fé cristã, como uma narrativa-convite ao não esquecimento de Jesus e à fé em sua ação salvífica no coração da humanidade.



                                                    CONTEXTUALIZAÇÃO


 “ O suor de uma vida humana laboriosa, conflitiva, irrequieta ,conduzida, porém, por um amor que ultrapassa o próprio coração daqueles que viveram e escreveram a história:isso é viver COM+PAIXÃO ”

Está acontecendo uma redescoberta do evangelho de Marcos , que, por longo tempo, esteve negligenciado entre os teólogos. Este evangelho, ainda hoje, nos toca por sua simplicidade, clareza e concisão.

Ler o evangelho marcano tendo em vista outra perspectiva, não mais direcionada apenas para o texto, o autor, a composição ou as fontes históricas que formataram o texto, mas seus olhares se voltaram para a maneira com que o texto foi elaborado e para os efeitos que o leitor, o interlocutor do texto, pode vivenciar a partir de sua leitura. A preocupação da análise narrativa voltou-se para o polo do leitor e não se fixou apenas no texto, catalisando energias para pensar o leitor do texto, o mundo que ele é capaz de construir com a ajuda do mundo do texto.

A escolha do evangelho de Marcos, a narrativa da Paixão de Jesus, em especial,amadureceu ao longo devido o desejo de percorrer essa jornada de Jesus. Trata-se de uma empatia misteriosa,satisfeita no texto de Marcos pela singular clareza do segundo evangelho. Uma narrativa rápida, concisa, coerente com o objetivo do narrador: dar a conhecer Jesus de Nazaré, o Filho de Deus.

O método semiótico, que identifica, no diálogo entre o texto e o leitor, os sinais e fenômenos que o texto permite visualizar,convida-nos a dialogar mais com o texto bíblico em si. O método será apenas o caminho; o nosso fim, nossa meta sempre será o efeito que o texto provocará em nós, e perceber as inquietações que este relato pode causar no leitor, que busca se comunicar com ele:

Que mundo o leitor poderá construir ao entrar em contato, como alteridade, com o mundo da Paixão de Jesus?

Ao propor a leitura de um relato bíblico, estamos em contato com um texto, um corpo textual, fruto de uma época, fragmento de uma História. Trata-se do retrato de uma realidade presente na construção dos personagens, que delineiam e matizam as realidades multifacetadas, apresentando o ponto de vista do narrador. Tal realidade se encontra no evangelho de Marcos.

O intercâmbio de experiências existentes entre os que viveram com Jesus e o narrador do evangelho e, por conseguinte, a experiência intercambiada entre o narrador e o leitor, que entra em contato com Marcos, em todo o tempo e lugar.

Vamos buscar perceber a importância da identidade narrativa na relação entre o relato e seu leitor, pois o texto se comunica com o leitor e lhe propõe um mundo, no qual ele é convidado a adentrar e buscar refigurar sua vida conforme o mundo do texto.
Há, desta forma, uma relação dialógica entre o texto, que é a comunicação de um mundo, e o leitor, que, ao lê-lo, pode se identificar e ainda refigurar sua existência a partir dele.


                  1. ANÁLISE NARRATIVA DA PAIXÃO ( MARCOS 14:1–16:1-8


A narrativa se constitui em um método que supõe os efeitos do texto, isto é, a pragmática do texto sobre o leitor e sobre os ouvintes. Trata-se de observar os efeitos que o relato da Paixão de Jesus, segundo Marcos, exerce sobre aquele que o lê: o leitor.


1.1 O ENREDO


A narrativa da Paixão é uma teologia da cruz, na qual Jesus narra a si mesmo como Filho de Deus que se doa para a remissão de muitos, de todos os que nele creem. A cruz é o critério hermenêutico a partir do qual tentamos compreender a Revelação de Deus.Os dados anexos à narração do Evangelho devem ser interpretados à luz da cruz; não somente a morte de Jesus, mas igualmente suas palavras e seus atos.

A tradição manuscrita oferece seis versões diferentes para o final do segundo evangelho.

Contudo, optar pela tradicional atestada do século XII; a antiga versão siríaca sinaítica e os importantes manuscritos das versões georgiana, armeniana e etiopiana.(  Marcos 16:9-20, embora seja considerado o segundo final do evangelho, não será comentado por razões metodológicas)

Pode-se compreender Marcos 14 a 161-8 como o Livro da Paixão a partir de uma questão relevante como produto da tradição selecionada por Marcos:o relato da Paixão se distingue do restante do Evangelho, que narra acontecimentos sucessivos cronologicamente,como no restante das tradições sinóticas, encontram-se tradições isoladas, podendo ser chamadas de perícopes.(unidade narrativa é formada por quatro critérios: tempo, espaço, personagens e temática.O narrador cria personagens, produz diálogos, inventa situações, monta esquemas, integra elementos, serve-se de inúmeros tipos de informações, dando-lhes unidade narrativa.

A razão pela qual o cristianismo primitivo tinha interesse especial nos acontecimentos dos últimos dias de Jesus,levou  Marcos a interessar-se pela Paixão como motivo crucial de sua narrativa,fazendo-a melhor articulada.

PERSONAGENS:

1: autoridades; 2: Jesus; 3: personagens actanciais; 4: discípulo (s); 5: Pilatos; 6: prisioneiros; 7: multidão; 8: centurião; 9: mulheres (discípulas); 10: personagens que retratam o divino).

CARACTERIZAÇÃO DOS PERSONAGENS:

Há quatro personagens fundamentais ou coletivos na trama do segundo evangelho:
Jesus, as autoridades, os discípulos e o povo.
Jesus é o personagem protagonista.
As autoridades, que são os antagonistas, são compreendidas como um grupo com um só personagem, pois os diversos grupos que se opõem a Jesus compartilham traços similares e mantêm um papel continuado na trama.
Os discípulos podem ser tratados como um único personagem e se relacionam com Jesus como “os discípulos” ou “os Doze”.
Por fim, as multidões atuam como personagens secundários, podendo constituir a quarta personagem no evangelho de Marcos

JESUS :

O personagem protagonista da intriga narrativa é Jesus.
Trata-se de um personagem que age conforme o itinerário de suas opções, com verdadeira autonomia. Marcos narra tudo aquilo que Jesus fez.
Em Marcos, Jesus se dirige a Jerusalém; é ungido em Betânia e depois segue em direção a Jerusalém; é entregue aos poderosos: é traído, preso, torturado; é assassinado e, por fim, pela ação divina de seu Pai, é ressuscitado da morte.
Este é o caminho percorrido por Jesus desde sua chegada a Jerusalém até o anúncio de que ele estaria vivo na Galileia, precedendo e confirmando os discípulos na fé.
Jesus de Nazaré é a face visível da Paixão, retrato de sua própria Paixão. É a vida de Jesus, sobremaneira seu martírio, que interessa ao narrador de Marcos: Jesus é quem suscita, alimenta e reveste o enredo da Paixão proposto por Marcos.
Em seu relato final, observamos um protagonista ativo e atípico que não se deixa esquivar de sua missão no encontro com a cruz em Jerusalém.
Jesus dá sentido ao relato da Paixão proposto pelo narrador, de modo que sem ele a mensagem marcana não teria significação.
Desse modo, seguindo o espaço de identificação com o personagem Jesus, aberto pela narrativa, é enorme. Jesus contagia o leitor do evangelho convidando-o a segui-lo até a cruz.

Em torno de Jesus, o personagem central, se encontra o personagem coprotagonista: Deus-Pai, de modo que tudo o que Jesus realiza, na trama de Marcos, é com a anuência de Deus. Por meio da ressurreição, ele é resgatado da morte e de seu aguilhão, tornando-se centro e clímax do evangelho.

OS PERSONAGENS COADJUVANTES

Todos estão em sintonia com o projeto da Paixão de Jesus, segundo Marcos.
São aqueles que aparecem , levando o sentido ou o significado do enredo até seu desfecho e cumprimento.
Desde Simão, o leproso, até às mulheres que o seguem em direção a Jerusalém, passando por José de Arimateia; todos eles são personagens coadjuvantes: personagens que dão significado aos acontecimentos relativos à vida de Jesus.
Os discípulos estão relacionados a Jesus e, sem ele, não adquirem autonomia na narrativa.
Tal relação com Jesus está entretecida pelo narrador.
Pedro, embora negando Jesus, continua relacionado a ele, o que demonstra que todo discípulo que se afasta do mestre pode negá-lo também. Pedro desaparece do enredo com um ato de arrependimento: o choro.
Por sua vez, Judas, o traidor de Jesus, evidencia que mesmo cumprindo um papel actancial, perde-se totalmente na trama a partir do momento da traição. Por isso, ele deixa a cena, em Marcos, sem nenhuma outra menção, apenas sumindo – como se dissesse que sua missão havia sido cumprida: trair e entregar Jesus com um beijo.

PERSONAGENS ANTAGONISTAS

São todos os personagens que se opõem à vida de Jesus como manifestação da vontade e do projeto de Deus.
Desde os escribas, sumo sacerdotes e anciãos do povo até Pilatos e Judas Iscariotes, são todos aqueles que fazem oposição à ação salvífica anunciada e vivida por Jesus no evangelho marcano.
A trama descortina que o Filho de Deus tinha opositores, tanto os representantes religiosos como os políticos; além de ser hostilizado pela multidão, que prefere Barrabás a ele. Esses personagens evidenciam o plano diabólico de execução de Jesus: seu fim, sua morte.
Entre os personagens oponentes e antagônicos no cenário político-cultural, destacam-se: Pilatos, o procurador romano da Judeia e Jerusalém ; Caifás, sumo sacerdote – nomeado por Roma e responsável por ela – junto com os sumos sacerdotes, os anciãos e o restante do concílio nacional do “Sinédrio”. Estes últimos governavam a Judeia e Jerusalém diretamente e administravam o Templo com o intuito de manter a ordem e garantir o aporte dos tributos aos superiores romanos.


PERSONAGENS ACTANCIAIS

São aqueles que exercem uma “função necessária para a realização da transformação que está no centro da narrativa.
Um personagem actancial, de aspecto sutil, porém significativo, pode ser encontrado constituído no homem com a bilha de água sobre a cabeça (Mc 14,13). Ele é anunciado por Jesus e servirá para a preparação da cena da última ceia com os discípulos. Este homem vem para esse nicho de personagens, pois exerce uma importante atitude: ceder sua sala de jantar para Jesus celebrar a Páscoa com os Doze.
Jesus envia dois de seus discípulos até ele: “Parti à cidade, e encontrar-vos-á um homem carregando uma bilha de água. Segui-o e onde ele entrar, dizei ao dono da casa que ‘o Mestre diz: onde está a minha sala em que comerei a páscoa com meus discípulos?(13-14). Jesus diz ainda que ele “vos mostrará uma grande sala de cima , arrumada, pronta, e lá preparareis para nós”.

A mulher que unge Jesus em Betânia, na casa de Simão, o leproso (14:3-9), também exerce um papel importante na narrativa. Ela unge Jesus para a morte, antecipando, de forma concreta, o que as mulheres almejavam em Mc 16:1.
As mulheres, Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago, além de Salomé, não chegam a embalsamar o corpo de Jesus, pois ele já não estava mais no sepulcro.
O personagem Simão, o leproso, poderia passar despercebido, pois, não exerce nenhum papel actancial. Ele, apenas traz, vinculado ao seu nome, o termo leproso , e isto “serve de endereço para situar a cena e o contexto da unção.
Outro personagem actancial é o anônimo traidor da última ceia, que aparentemente revela um jogo de enigma da parte do narrador. No final, contudo, Judas Iscariotes também exerce o papel actante, uma função “necessária”, dando um novo matiz à vida de Jesus, ao entregá-lo à morte.
Outro personagem significante, em sentido negativo, é Pilatos, que autoriza a condenação de Jesus. Também o centurião, em Mc 15,39, desempenha um papel actante, anunciando que Jesus era verdadeiramente o Filho de Deus: ele atesta a filiação divina de Jesus, dando um significado a tudo o que Ele vinha revelando na trama do segundo evangelho.
Já em 15:21, no momento em que Jesus estava levando sua cruz para o Calvário, aparece na cena um homem, chamado Simão Cireneu, pai de Alexandre e Rufo, que ajuda Jesus a carregar a cruz. Ele exerce um papel decisivo, tornando-se, mesmo que por imposição, solidário a Jesus em seu suplício.
Em 15:43-46, aparece outro personagem simpático a Jesus que exerce uma ação fundamental. Trata-se de José de Arimateia, que, embora esteja também no rol dos personagens coadjuvantes, exerce uma função actancial, pedindo para Pilatos o corpo de Jesus e o sepultando em um lugar privado. Ele exerce uma transformação na cena, pois leva o corpo de Jesus para um sepulcro e será lá que se desenrolará a cena da ressurreição.
Em Mc 16:5, o jovem vestido de branco, que anuncia a ressurreição de Jesus, exerce o último e mais significativo papel actancial, afirmando que aquele que estava morto não jaz mais na destruição, mas foi ressuscitado e precede os seus discípulos na Galileia (Mc 16:7b). Esse jovem tem traços de figura teofânica, pois expressa a divindade, confirmando o Ressuscitado. Nesta cena “a substituição do corpo de Jesus por este ‘jovem’ é o que forma um acontecimento chocante”. Ele anuncia às mulheres a ressurreição de Jesus. Ele está sentado à direita, em sentido de autoridade; sua túnica é branca, em expressão de vida, aludindo talvez à transfiguração de Jesus, e sua missão é diaconal, pois tem um papel particular de anunciar. Ele, reiterando, parece estar em sintonia com o divino, tal como no relato da visão sobre a montanha, em Mc 9:33. Este jovem parece performatizar a própria mensagem da ressurreição, uma realidade sempre nova, ou seja, rejuvenescedora .
Anteriormente, em Mc 14:51-52, o narrador aludiu a um jovem que seguia Jesus, envolto em lençol; ele foi detido, mas fugindo nu, deixou o lençol. Tal jovem pode aludir aquele jovem  no sepulcro (16:5). Ambos estão vestidos. Um, porém, estava envolto em um lençol ; o jovem no sepulcro estava vestido com uma túnica branca . Os termos gregos lençol e túnica são distintos. O primeiro jovem, em Mc 14:51, não exerce no relato da Paixão (14:1–16:1-8) nenhuma mudança expressiva, diferentemente de outros personagens actantes, como a mulher que unge Jesus (14:3-9), Simão Cirineu (15:21), que ajuda a levar a cruz de Jesus ou, ainda, José de Arimateia, que sepulta o corpo de Jesus (15:46). O segundo jovem, em 16:5, como já vimos, exerce um papel preponderante: anuncia às mulheres no sepulcro que Jesus não está mais lá, mas Ressuscitou da morte e precede os seus na Galileia.

PERSONAGENS FIGURANTES

Alguns personagens são figurantes e não exercem força expressiva no evangelho marcano.
Trata-se dos que aparecem na cena sem nomes, correspondendo ao coletivo.
Um exemplo é a multidão, que não sabia discernir os acontecimentos que envolviam Jesus.
“Os que foram crucificados com ele”, “alguns ali presentes”, “eles”: são os figurantes que preenchem a cena.
Este estilo coletivo é próprio dos antigos escreverem, mesmo porque, na Antiguidade, os personagens coletivos eram muito comuns; diferente das narrativas modernas, cujo centro das atenções se voltou para os indivíduos.
Os discípulos, que tem uma ação contundente na narrativa, são tratados como personagem coletivo, mas não por isso representaram um papel exclusivamente figurativo, pois eles somam “gravidade” à trama, até mesmo com a ausência, pois a pergunta do leitor consiste sempre: “para onde foram os discípulos?”
São uma espécie de tipologia de atitudes que variava da rejeição total à fé exemplar, também buscamos constatar estas relações dos personagens com Jesus no relato da Paixão em Marcos. Pretendemos fazê-lo a partir de alguns estereótipos comuns, tais como: rejeição total, intolerância, apatia, empatia, simpatia, seguimento-adesão e fé exemplar:

Os estereótipos elencados podem ser identificados mais a partir das ações dos personagens do que por suas palavras; ações que evidenciam os personagens em relação a Jesus e sua condenação. Alguns personagens os que assumem os papéis estereotipados da rejeição total e ou da intolerância. Podem ser elencados aqui diversos personagens: Judas (14,10), os sacerdotes chefes (sumos sacerdotes), os escribas e os anciãos (14,1.53); Pilatos (15,15) e os soldados (15,16). Outros são empáticos a Jesus e o acompanham com a simpatia de fé, como é o caso da mulher que o unge em Betânia, (14,3-9); alguns discípulos, que mesmo não entendendo tudo acerca do que se passa com Jesus estão ao lado dele (14,12-16); o jovem que o seguia vestido com um lençol (14,51); Simão de Cirene (15,21); o centurião, que exclama sua filiação divina (15,39); José de Arimateia, que vai a Pilatos pedir o corpo de Jesus a fim de poder sepultá-lo (Mc 15,43); e outros que o seguem, como exemplo de adesão discipular, tais como as mulheres, que aparecem em três cenas da narrativa da Paixão (Mc 15,40. 47; 16,1).

Os discípulos, por sua vez, ao parecer demonstrar que não compreendem tudo o que acontece com Jesus, o Mestre, fazem parte de um estereótipo que pode ser chamado seguimento por empatia. Eles executam algumas ordens estabelecidas por Jesus (14,13), mas nem sempre chegam à perfeição da obediência (14,37). Entre os discípulos encontramse Pedro (14,30), que o nega, e Judas (14,10), que o trai por dinheiro (14,11). Este último, Judas Iscariotes, pode ser enquadrado no estereótipo designado rejeição-apatia, pois se trata de um discípulo que não compreende a missão e a opção de Jesus, sua frustração em relação ao modelo de messianidade assumido por Jesus parece levá-lo à traição.

Há, contudo, entre os seguidores de Jesus, aquelas que se destacam por um seguimento-adesão: as mulheres que o acompanham e o servem (15,40-41); embora a narrativa da Paixão termine com o silêncio de tais mulheres, que poderia se assemelhar a um mal-entendido por causa do medo, elas são convidadas à fé exemplar por meio do personagem jovem, que constitui uma espécie de arauto da ressurreição de Jesus. Ele é quem afirma às mulheres que Jesus ressuscitou (16,6): anuncia-lhes a missão de irem na Galileia para encontrarem Pedro e os discípulos, e lhes afirmar que Jesus, o Vivente, não jazia mais no sepulcro. Anunciar Jesus Ressuscitado é o pleno sentido do estereótipo de fiel exemplar. “A fé na ressurreição de Jesus repousa sobre o testemunho dos apóstolos e das santas mulheres”. Contudo, poderíamos inverter a ordem desses personagens: ousamos colocá-las (as santas mulheres) em primeiro plano, como primeiras apóstolas do Ressuscitado. Elas são as que anunciam aos apóstolos, num segundo momento, o Ressuscitado.

No versículo 41, o narrador introduz ao leitor, e isso não é sem intenção, verbos significativos para toda a narrativa marcana. Tais verbos podem ser traduzidos por “seguiam” e “serviam”. O narrador afirma que aquelas mulheres seguiam e serviam Jesus, na Galileia, desde o início de seu ministério. Isso alude à veracidade de seu discipulado, fazendo pensar que elas não estivessem em Jerusalém apenas por ocasião da Páscoa, como muitos turistas, mas que tivessem acompanhado Jesus em sua caminhada, com os Doze e muitos outros anônimos. O narrador ainda diz que muitas outras (mulheres) estavam lá e que haviam subido com Jesus até Jerusalém. Neste versículo aparece também o verbo que se refere a  “subir”, “ir” a algum lugar na companhia de alguém. Quando se refere a ir à cidade de Jerusalém, o verbo quase sempre é “subir”. Este verbo está relacionado, indubitavelmente, com o verbo  seguir.

Os sacerdotes chefes, escribas e anciãos são citados aproximadamente sete vezes ao longo do texto de Mc 14,1–16,8.
O sumo sacerdote, ou sacerdote chefe, representa o pior dos estereótipos em relação a Jesus, ou seja, o da completa rejeição ou rejeição plena.
Os sacerdotes chefes, ou sumos sacerdotes, escribas e anciãos, fazem referência ao poder religioso, àqueles que trabalham com as Escrituras, e ao civil: uma espécie de triunvirato maldoso que se une para destruir Jesus. Sua rejeição tende à  intolerância religiosa, uma vez que Jesus anunciava uma mensagem que provinha do Reino e o tinha como centro da vida dos homens. O Reino, a Soberania e a Era de Deus eram a verdade que Jesus pregava.

Também nesse rol entram os soldados, que serviam para a manutenção da paz e da segurança do representante do Império Romano. Os soldados são intolerantes a Jesus, tratando-o com desprezo e crueldade. Eles o humilham, o insultam e o maltratam com escárnio.

A cristologia, em Marcos, pode ser entendida como substrato ou consequência da descrição de Jesus realizada pelo narrador.
O protagonista do evangelho de Marcos, Jesus de Nazaré, pode ser considerado um personagem redondo, o que para a análise narrativa representa um personagem bem estruturado e possuidor de diferentes nuances que ficam evidentes no conjunto da leitura do evangelho marcano.
Jesus se apresenta a nós como um personagem completo, pois contém traços marcantes, dentre os quais, o mistério, que o leva a atuar de maneira nova e surpreendente, agindo como Deus.

Pode-se dizer que:

O que Jesus “diz” revela sua compreensão de si mesmo como agente de Deus e seus propósitos. Tanto o que Jesus faz como o que ele diz expressam seus valores e mostram sua integridade vivendo de acordo com esses valores. As reações ante Jesus incluem medo, ofensa, assombro, lealdade aguerrida e firme oposição.

Tais informações nos possibilita ver a integralidade do personagem Jesus.
Os leitores se encantam com o Jesus narrado por Marcos. Ele é autônomo em todo o sentido da palavra, sendo caracterizado, pelo narrador, como Filho de Deus, profeta ou Messias.
Ele decide o destino de sua vida, realiza em si a vontade de Deus, o Pai,que o enviou.
Jesus é descrito Filho de Deus do começo ao fim do evangelho (Mc 1,1- 15,39).
Na narrativa, ele se posiciona com atitudes decisivas: ir a Jerusalém, à cidade de Betânia; voltar para Jerusalém; comer a Páscoa com seus discípulos; orar ao Pai no silêncio; deixar-se ser conduzido pelos guardas até o Sinédrio e, ao mesmo tempo, à cruz. Por fim, doar-se às mãos de Deus. Ele “vai à morte sem resistência alguma”

A caracterização do personagem Jesus no evangelho de Marcos se revela em consonância como o servo sofredor na profecia de Isaías.
Jesus é o “sofredor inocente, Filho obediente, o total cumprimento das Escrituras.
Mc 14,1-42 revela um Jesus obediente e sofredor.
Em Mc 14,43–15,15, é possível testificar o desenvolvimento da imagem de Jesus, mestre e profeta, vindo da parte de Deus.
A cena da prisão de Jesus fornece um link crucial entre as imagens proféticas de Jesus e a Cristologia da Paixão.
A secção de Mc 15,16–16,8 fornece elementos conclusivos sobre a caracterização de Jesus: “o sofredor inocente cede elementos para a imagem profética da narrativa da Paixão”.
Desde o começo do evangelho se estabelece um elo entre o ministério e a proclamação de Jesus, além da sua morte.
A cena da morte de Jesus (Mc 15,20c-37) traz a Cristologia da Paixão para a realidade: ela cumpre as imagens de Jesus servo sofredor e profeta condenado.
Nesse sentido, é possível compreender o sentido da invocação do Salmo 22 para descrever Jesus como o sofredor inocente.

Nessa perspectiva, pode-se conceber que algumas palavras e ações de Jesus estivessem relacionadas às Escrituras que o precederam. A vida de Jesus, correspondendo em realidade aos textos do Antigo Testamento, “especialmente porque tanto Jesus como seus oponentes eram pessoas versadas nas Escrituras, ou foram tocados, de um modo influenciado, pelas Escrituras, ainda que os atos não tivessem sido criados por elas” .
Assim, parece improvável que os cristãos tivessem atribuído a Jesus crucificado as palavras do Sl 22,1 (“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”) se ele, de fato, não as tivesse pronunciado naquele momento decisivo humano abandonado durante uma noite de solidão.
A não resposta de Deus é ressentida por aquele que o invoca. A ausência do evocado é sentida.
Há, neste sentido, um contexto de identidade profunda entre “a noite, a morte e o silêncio”.
No caso de Jesus, mesmo em plena luz do dia, sua morte pode ser apontada como o maior distanciamento entre ele, o Filho, e seu Pai, Deus.

Em Jesus, contudo, de modo fiducial, cumprem-se os desígnios de Deus.
Ele tem como destino a cruz e, mesmo sendo humilhado, não ergue sua voz para replicar os insultos, pois confia em Deus. Contudo, tal lamentação, o Sl 22, pode ser considerada um último grito de agonia, tanto por parte de Deus como dos homens. “Para os profetas (Isaías, Jeremias, Ezequiel), se o Homem sofre, Deus sofre também , por causa de Seu abandono por parte do Homem”.
Portanto, o Sl 22, na boca de Jesus, pode ser compreendido como uma prece, uma oração a Deus, a fim de que seu Reino advenha, de modo especial, para todos os que sofrem.
É, portanto, à luz deste versículo que se pode compreender a confissão do centurião, que, vendo como Jesus morria, exclamou: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus”. A voz do centurião pode ser considerada, para o evangelho de Marcos, uma possível resposta de Deus na complementação do Sl 22.
Deste modo, Deus não se ausenta totalmente na Paixão de seu Filho, mas contempla a profundidade de sua morte. Jesus cumpre os desígnios de Deus.

Tal afirmação pode se embasar  verdades que o evangelho evidencia:

Jesus é o único ao qual Deus concedeu sua autoridade no mundo;
Jesus tem confiança extraordinária em Deus; o ato de Jesus servir define sua maneira de relacionar-se com Deus e com os homens.
As obras de Jesus, em Marcos, expressam a compaixão e o bem-estar da soberania de Deus aos que são “como ovelhas sem pastor”.
Os atos de Jesus, de servir aos irmãos, curar suas enfermidades, multiplicar os pães para os famintos, exorcizar os possuídos e, por fim, se doar resolutamente na cruz para remissão de muitos, evidenciam que de seu itinerário teológico está mesmo inspirado pela imagem do servo do Senhor.

Também faz-se indispensável analisar o personagem Jesus no enfrentamento com a morte, em sua execução e, por fim, no significado de sua crucificação.
Em relação à morte, Jesus sabe que ela virá inevitavelmente, podendo tratar-se de uma consequência para sua vida: pregação e ação messiânica libertadora.
Jesus também provocou a hostilidade das autoridades, entrando em Jerusalém com uma multidão de seguidores e atacando o templo (cf. Mc 13,2).
“Jesus tem medo da crucificação e sua recomendação aos discípulos no Getsemani sugere que ele conhece a debilidade de sua própria carne frente à morte” (Mc 14,32-33).
O narrador marcano mostra Jesus angustiado e assustado “em  tristeza mortal” (Mc 14,34), mas reconhece que ele se submete à vontade de Deus, desejando ser fiel (Mc 14,36). Perto de sua morte, Jesus lança um forte grito e expira (Mc 15, 34.37). Se “não há volta, não há libertação para esta execução. Deus não resgata Jesus de sua morte” 65. Compreendemos que o protagonista de Marcos enfrenta a morte solitariamente: o último grito de Jesus confirma seu sentimento de abandono por parte de Deus; morre só e um desconhecido o sepulta. Na crucificação, Jesus se revela resiliente e segue, até o último suspiro, realizando a vontade de Deus, que o acolhe em sua morte. Com isso, afirmamos que “a execução foi consequência trágica da fidelidade de Jesus à soberania de Deus”, ao reinado de Deus e sua vontade, levando à escuridão que abate o cenário da morte, indicando o aniquilamento, o fim de tudo.
O véu do templo se rasga em dois (versículo 38), simbolizando a sua ruptura: o fim de seu sentido.
O templo deixa de significar lugar da relação com Deus. É agora, na morte e ressurreição de Jesus, que se estabelece o novo lugar de encontro com Deus.

Jesus é ressuscitado e a soberania de Deus chega a seu poder e glória. Marcos enfatiza a morte e ressurreição, pois o significado de tais eventos dão sentido a todo o Evangelho.
Nada é maior que a morte e a ressurreição de Jesus, para o segundo evangelho.
A morte, mesmo retratada como dolorosa, pois é experimentada na cruz, não é descrita por Marcos como um sacrifício unicamente expiatório, ou seja, pelos pecados, mas trata-se da consequência aparente da vida de Jesus, tudo o que é narrado acerca da práxis de Jesus no evangelho marcano tem como culminação a morte e ressurreição.

Marcos intenta estabelecer causas para a morte de Jesus: primeiro, as ações humanas, quando as autoridades levam a cabo a pena de morte contra Jesus; em segundo, a vontade de Deus.
Claramente, em Marcos, Jesus “vai à morte crendo que é a vontade de Deus

Podemos, aqui, compreender que Jesus “vê sua vida completa, incluindo sua execução, como um meio pelo qual as pessoas são resgatadas ou libertas para uma vida de serviço à soberania de Deus”7. Nesse sentido, a soberania corresponde à categoria bíblico-teológica do Reino de Deus; é uma categoria indispensável à teologia dos evangelhos, pois corresponde ao horizonte da pregação de João Batista e de Jesus e, certamente, de todos aqueles que esperavam tal reino ( Mc 15,43)

Jesus é apresentado em Mc 15,39 como “Filho de Deus”, na boca de um gentio, um centurião romano. Ele contempla Jesus em sua morte e exclama: “Este homem era Filho de Deus”.
O narrador conduz o leitor a perceber que Jesus, mesmo em sua agonia, é realmente o rei divino. Então, o centurião põe em manifesto o personagem Jesus, atraindo a atenção do leitor.
Tal fato parece ser ironia marcana, pois é justamente um romano quem percebe a filiação divina de Jesus na cruz. O centurião é o último ser humano a declarar a identidade crível de Jesus.

Mesmo ao som dos insultos dos transeuntes, o narrador quer afirmar que o trono da cruz é o lugar máximo da revelação do Filho de Deus: sua morte é reveladora. Assim, se a multidão se mostra como testemunha irônica, podemos ver Jesus como a verdadeira testemunha da soberania de Deus.. Ele é o Filho de Deus por excelência.

Em relação à ressurreição, o personagem Jesus, em Marcos, se apresenta seguro de que esta corresponda à realidade constante e próxima, sobretudo porque o evangelho marcano está “embebido” de ressurreição.O Evangelho de Marcos é um texto ‘saturado’ (repleto) de ressurreição; nos anúncios da paixão e ressurreição (Mc 8.9.10), no relato da Transfiguração e de outros relatos que ainda dão à narrativa uma tonalidade pascal”

O personagem Jesus, em Marcos, está caracterizado em suas parábolas e em seu modo de pensar e de ser, segundo a representação do testemunho que os discípulos  fazem de sua messianidade. Contudo, enquanto os discípulos estavam com o Jesus terrestre, nem sempre o compreendiam com perfeição. O testemunho dos discípulos e dos apóstolos é pós-pascal e assinalado por uma espécie de modelo sobre o Jesus que é narrado.

Ao observarmos a caracterização do personagem Jesus, na trama da Paixão em Mc 14,1–16,8  leva a demonstrar que Mc 14– 16 proporciona um multifacetado retrato de Jesus, construído, clarificado e ampliado por meio de sua relação recíproca com a narrativa maior”.
Esta “narrativa maior” , por fim, corresponde ao texto que antecipa o relato da Paixão, Mc 1 – 13.

Desse modo, percebe-se que a caracterização de Jesus, para o narrador de Marcos, constitui algo indispensável para levar o leitor a atentar-se ao horizonte teológico da vida de Jesus. Ele é o Filho de Deus, o Filho do homem, o Messias, aquele que entregará, na cruz, sua vida e ressuscitará da morte, toda descrição da vida de Jesus, de modo geral, é relativa a Deus, à sua soberania, ao Reinado de Deus.

Os discípulos podem ser caracterizados pelo conflito “entre viver segundo os termos de Deus e segundo os termos humanos”. Os discípulos se esforçam por viver segundo a soberania de Deus, desejando de todo coração seguir o seu filho, sendo capazes de assumir os riscos dessa escolha. Ao mesmo tempo, vivem segundo a perspectiva humana, que se preocupa apenas com a própria seguridade, status e poder.

Diante disso, pode-se concluir que os discípulos, em Marcos, retrocedem na fé. Eles começam, no relato, como personagens confiáveis, mas terminam “sendo exemplos de como não se deve seguir a Jesus”.
No relato da Paixão, dão provas antitéticas de seguimento: seguem Jesus até Jerusalém e Betânia; um, dentre eles, entrega Jesus por dinheiro, logo após a ceia; Pedro não consegue, juntamente com os discípulos, vigiar enquanto Jesus ora, no horto, pois se põe a dormir. Posteriormente, Pedro o nega por três vezes. De modo geral, todos abandonam Jesus, na morte; só as mulheres que o seguiam e o serviam, desde a Galileia, observam de longe a cena da morte, do sepultamento e da ressurreição.

Em outros termos, pode-se dizer que a incompreensão dos discípulos não é a mesma dos leitores de Marcos.
Uma coisa foi a morte brutal de Jesus, entregue nas mãos dos romanos, como se tinha predito (Mc 8,31); outra coisa foi a experiência de sua morte, como ausência de Deus (Mc 15,34)88.
Desse modo, o acontecimento ultrapassa a predição.

Jesus ensina aos discípulos que seu discipulado implica, inclusive, em perseguição.
O ato de segui-lo a Jerusalém fará com que os discípulos repensem o sentido da missão.

A ausência dos discípulos no relato da Paixão, sobretudo, em seu clímax e desfecho, leva-nos a pensar que, para seguir Jesus, é necessário o movimento de relativização da própria vida, que deve ser colocada a serviço dos irmãos, assim como ele o fez, na cruz do Calvário.
No entanto, desde o início do relato marcano, Jesus foi ensinando o servir e o desapego a sua própria vida.
Quando ele curava as pessoas, as libertava dos espíritos impuros e as ensinava, ele demonstrava que sua vida era instrumento, meio de salvação e que tinha vindo ao mundo para servir e não para ser servido (cf. Mc 10,45).Embora os discípulos tenham abandonado Jesus na Paixão, “sua apostasia não foi definitiva”. Basta averiguar o final canônico de Marcos (16,7-8), no qual o jovem diz às mulheres: “Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vai adiante de vós para a Galileia. Lá o verão, como ele vos disse”. Com tais palavras, o narrador resgata no leitor de Marcos a esperança do seguimento e do serviço dos discípulos de Jesus. Eles deveriam ser avisados, instruídos de que Jesus ressuscitou e que a morte não havia sido a última palavra a respeito dele.

No que se refere ao relato da Paixão, segundo Marcos, os pontos de vista estão relacionados ao personagem protagonista da Paixão: Jesus é um homem de fé que entrega sua própria vida no Calvário, assumindo, plenamente, a vontade de Deus.
Com isso, ele se identifica com a soberania de Deus, constituindo-se aquele que vem para servir, e não para ser servido. Perdendo sua vida na cruz, Jesus ganha de Deus a fiabilidade total – sua filiação é plena e, por isso, Jesus é ressuscitado dos mortos.
Da parte dos homens, as autoridades judaicas se tornam veementemente hostis a Jesus; resta-lhes a identificação com a falta de fé, o medo em relação ao que Jesus poderia tratar frente à estabilidade da religião judaica e o modo como ele, Jesus, viveu a religião, libertando as pessoas de toda opressão e desestabilizando a presunção daqueles que detinham o exercício do poder.
Estas questões podem ser observadas em dois momentos da narrativa da Paixão de Jesus.

Primeiro, em Mc 14,61-63, em que Jesus é questionado pelo sumo sacerdote sobre sua identidade: “Tu és o Cristo, o Filho do Bendito?”; pergunta à qual Jesus responde: “Sou eu, e vereis o Filho do Homem assentado à direita do poder e vindo com as nuvens do céu”. Depois dessa resposta acintosa, o sumo sacerdote rasga suas vestes em gesto reprovador das palavras de Jesus, que pareceu ferir, com elas, sua fé messiânica, que não via nele o Filho de Deus. A resposta de Jesus parece desestabilizar a compreensão de fé do sumo sacerdote, que representava, de forma ordinária, a fé judaica.

Em seguida, em Mc 15,2-5, passagem na qual Pilatos questiona Jesus se ele era mesmo o rei dos judeus, recebendo a resposta: “Tu o dizes”. Os sacerdotes chefes o acusaram de muitas coisas; Pilatos redarguiu, dizendo: “Não respondes nada? Olha de quantas coisas te acusam?!” Jesus, contudo, nada respondeu, fazendo Pilatos se admirar (Mc 15,5). A admiração de Pilatos e o silêncio de Jesus são ironias do narrador de Marcos: a autoridade hegemônica de Pilatos é destituída e relativizada pelo silêncio ensurdecedor de Jesus. A presunção do Procurador Romano, de saber tudo, pela autoridade que exercia, cai por terra mediante o silêncio de Jesus, que revela o mistério de Deus em sua vida. Assim, Jesus responde silenciosamente, pois seu poder primacial vinha do Pai, de Deus mesmo.

No ponto de vista teológico, o termo “Filho de Deus” se sobressai em toda a narrativa de Marcos e na culminação do relato da Paixão (Mc 15,39). Na abertura do relato marcano, em Mc 1,1 o título “Filho de Deus” já constitui uma informação fornecida ao leitor. Contudo, esta informação “permanece escondida para os personagens que aparecem progressivamente na narração” (os discípulos, a família de Jesus, os adversários). Só os leitores são colocados a par da opinião de Marcos sobre a filiação divina de Jesus.
Aparentemente, apenas os demônios são capazes de revelar quem é Jesus (1,24-25; 3,12). É curioso perceber que os demônios têm uma presciência em relação a Jesus, conforme descrito em Mc 1,24, quando o espírito impuro diz: “Sei quem tu és: o Santo de Deus”. Já em Mc 3,12, se diz que os espíritos impuros caíram aos pés de Jesus e gritaram: “Tu és o Filho de Deus”. Jesus, porém, ordenava-lhes silêncio. Em Mc 5,6, o espírito impuro, ao ver Jesus de longe, correu e ajoelhou-se diante dele e clamou em alta voz: “Que queres de mim, Jesus, Filho do Deus altíssimo?”
Em Mc 1,11, semelhantemente a Mc 9,7, tanto o batismo como a transfiguração trata-se de uma realidade externa a Jesus, não-humana, mas teofânica, na qual Jesus é revelado Filho amado
No caso de Marcos, em alguns momentos o leitor percebe que Jesus não desejava ser reconhecido como Filho de Deus durante sua vida terrena,na qual Jesus produz grandes esforços para reorientar a honra ou o respeito para Deus, retirando de si a atenção dos personagens e remetendo-a àquele que o enviou.

 O reinado de Deus, entendido como soberania de Deus, aparece no relato da Paixão de maneira contundente: Jesus faz a vontade de Deus agindo conforme a soberania daquele que o enviou; ele celebra com seus discípulos a partilha do pão, seu próprio corpo ofertado como alimento; se entrega às mãos dos perversos com a anuência e sob a vontade de Deus; seu caminho para o Calvário passa pelo projeto do Pai, que envia seu filho para cumprir sua vontade.

Jesus leva essa vontade de Deus às últimas consequências, entregando-se pacificamente à morte na cruz.
A soberania de Deus também se mostra na ressurreição de Jesus, anunciada às mulheres que foram ao sepulcro – por esse gesto, manifesta-se a certeza de que Jesus foi ressuscitado da morte e se faz presente na Galileia, primeiro lugar teológico da manifestação genuína da soberania de Deus por meio dos milagres e ensinos que lá protagonizou. A expressão “lá o vereis” indica a certeza da glória de Jesus que será manifestada na Galileia: sua ressurreição constitui a plenipotência de Deus sobre seu Ungido – o Messias. Para o leitor crente, este retorno na Galileia é sinônimo de um trabalho de releitura, de reinterpretação da existência de Jesus à luz do evento pascal: para ele, não há outro acesso ao Jesus da história que o Cristo da fé”. Mas diríamos também que a Galileia é também lugar de recomeço, sobretudo por causa da alegria que todo recomeço possibilita. Desse modo, voltar na Galileia para ver o ressuscitado corresponde à possibilidade de segui-lo com mais fidelidade e entusiasmo.
Outros pontos de vista podem ser destacados na leitura do relato da Paixão segundo Marcos (14,1 – 16,8): a unção em Betânia, por parte da mulher, cuja atitude seria sempre lembrada (ou “será contada” ; a compreensão, ou a impossível compreensão da vontade humana versus a vontade de Deus, expressa de forma excepcional pela maquinação maligna das autoridades que, desde muito cedo, no evangelho de Marcos, procuram aniquilar Jesus, conduzindo-o à morte; em seguida, a conspiração de traição, fruto da incompreensão do traidor em relação a seu mestre Jesus; o ponto de vista teológico e a perspectiva da ceia de Jesus, na instituição de um gesto profético de entrega antecipada da vida, significada no pão e no vinho e compreendida de forma exemplar no altar da cruz; a incompreensão dos discípulos, seguida do abandono e da negação por parte de Pedro; a prisão de Jesus como negação do exercício de libertação de seus compatriotas; a confabulação perversa para condenar Jesus à morte; a execução de Jesus como máxima expressão da apatia e desprezo para com ele; a exclamação de fé por parte do centurião, que proclama Jesus o Filho de Deus; o seguimento e o serviço das mulheres até o fim da vida de Jesus, ao pé da cruz, e o discipulado a partir do encantamento de uma figura quase final do evangelho, que é José de Arimateia, aquele que sepulta Jesus; por fim, a proclamação da ressurreição de Jesus e o encontro com ele na Galileia, tendo como final abrupto o medo e o silêncio das mulheres, designadas pela figura epifânica para anunciarem o Ressuscitado.
Os pontos de vista do narrador a respeito da vida de Jesus, desde sua unção em Betânia até ao fim “enigmático” da trama, seguido do silêncio e do medo das mulheres seguidoras, formam o conjunto teológico de Marcos, bem como o escopo, a finalidade pela qual ele narrou seu evangelho.
Assim, consideramos que o narrador de Marcos dá um sentido teológico narrativo ao sentido cronológico dos últimos momentos da vida de Jesus, bem como um significado à sua morte e à proclamação de sua ressurreição, lida como verdade fundamental do evangelho.

Evidentemente, sem estes aspectos que correspondem à narrativa da Paixão de Jesus em Marcos (Mc 14,1 – 16,8), não poderia ser anunciado o evangelho como a Boa Nova do Jesus Ressuscitado. A narrativa da Paixão, em seu conjunto polifônico e harmonioso, dá sentido à vida de Jesus e também ao fato de sua ressurreição: o fundamento do evangelho narrado é, necessariamente, a vida de Jesus: sua morte, mas principalmente o desfecho de tudo, a ressurreição.


                                                 CONCLUSÃO


O final aberto do evangelho, como ponto de vista inusitado da teologia de Marcos, pode ser considerado uma continuidade do segredo acerca do personagem Jesus, já que toda verdade comportada no evangelho não sana a curiosidade da fé humana a respeito de quem é Jesus. O mestre da Galileia, Jesus Nazareno, pode ser considerado em sentido mais amplo do que aquele que as notícias dão a conhecer: há uma reserva de sentido quanto a ele e à sua vida. O fim do evangelho, permeado por medo e pavor, seguido de silêncio, pode, notadamente, significar que o mistério do Messias Jesus vai sendo desvelado na vivência do anúncio contínuo da boa notícia a seu respeito; boa notícia que nos diz que ele está vivo, ressuscitado, e que espera para ser contemplado por seus discípulos na Galileia. O que poderia ser entendido especificamente como tragédia no sentido clássico do termo, se transforma em possibilidade de catarse, de recomeço, como lugar de novas descobertas.

O final de Marcos pode ser entendido a partir de seu começo, Mc 1,1 “Início do evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus.

Consideramos, em parte, esta afirmação, sobretudo, no que concerne ao fato de que o autor (Marcos), já no início de sua obra, diz que ela não é tudo, mas só o início . “Muitas coisas aconteceram e ainda vão acontecer. O resto vocês devem buscar na caminhada da Igreja...”. Por outra parte, consideramos que terminar em suspense seria um modo de passar adiante a necessidade de contar um final coerente para o evangelho.

Desse modo, terminar uma narrativa com uma resposta em branco , em suspense (16,8) constitui, particularmente, um recurso literário muito estimulante para o leitor. A singularidade da conclusão de Marcos  estimula a interpretação e não a reconstrução conjetural de suposições”. Isso significa que o leitor é provocado a tentar dizer o não-dito.
Marcos não supõe uma resposta final para a intriga (Mc 15,40- 16,8); antes, ele deixa a possibilidade de um final ao leitor em sua liberdade interpretativa.
O silêncio marcano indica o convite dirigido ao leitor para que ele termine a narrativa buscando um desfecho em consonância com o relato narrado desde o começo.

Na busca de definir o itinerário teológico do narrador e seu ponto de vista final, podemos afirmar que Marcos concedeu forma dramática ao servo sofredor do Senhor, perceptível na obra do trito-Isaías, sobremaneira Is 52,13-53,12.
A cristologia de Marcos, o Jesus Cristo encontrado no entretecer da narrativa, constitui produto refinado da percepção e leitura do servo sofredor que se entrega piamente  à morte, sofrendo e morrendo por muitos (Mc 10,45). Essa consideração se baseia na hipótese de que o narrador de Marcos tenha se inspirado no horizonte teológico de Isaías, sobretudo nos cânticos do servo de Javé, que sofre resolutamente. Assim, na perspectiva de Mc 15,39, o centurião, que exclama a morte de Jesus, representaria os povos vizinhos, que testemunham o acontecido com o servo que sofre, que obtém o triunfo de Deus, pois cumpre com diligência o que o Senhor lhe ordenou.

A mensagem sobre o sofrimento de Jesus, no evangelho de Marcos, assim como o sofrimento do servo de YHWH, em Isaías, parece maior e significantemente mais importante que o próprio triunfo de ambos. Contudo, a mensagem positiva e de esperança constitui a essência de ambos os textos. Jesus é visto como servo sofredor e obediente a Deus na ótica de Marcos; é o servo que se entrega, desde o princípio da narrativa da Paixão, às mãos dos malvados e, seguramente, às mãos salvíficas de Deus, o Pai. A exclamação fiducial “Abbá (ó Pai)! Todas as coisas são possíveis para ti: afasta de mim este cálice, porém, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36), corresponde ao desejo de cumprir tal vontade e não se furtar à sua própria. O filho Jesus se entrega nas mãos do Pai cumprindo os desígnios da soberania de Deus, e não a sua própria glória.
O ponto de vista final de Marcos ressalta Jesus, Filho de Deus, que se faz servo para a salvação de muitos, entregando a própria vida aos discípulos (Mc 14,22), oferecendo-lhes o cálice da aliança derramado por muitos (Mc 14,24) e estando prestes a beber o cálice do martírio (Mc 14,36). A morte de Jesus, então, se faz motivo de dispersão dos discípulos; sua profecia diz: “Ferirei o pastor e as ovelhas serão dispersas” (Mc 14,27).

O leitor de Marcos é convocado, ainda hoje, a dizer quem é Jesus Ressuscitado: este pode ser considerado o ponto de vista fundamental. O leitor e a leitora do evangelho são chamados a se converterem em seus intérpretes; são, também, interpelados a conhecer e se encontrar com Jesus. O evangelho, portanto, lança um convite para o encontro e comunhão com o Filho de Deus, Jesus Cristo, que se entrega na cruz para nossa salvação. Daí se pode compreender que a vida de Jesus é de fato uma “epifania secreta, e somente a proclamação da Cruz e da ressurreição revelam, devida e justamente, Jesus no Evangelho”